Desde o lançamento do blockbuster Pantera Negra (2018), o Afrofuturismo tornou-se o termo do momento internacionalmente . Com suas raízes na ficção científica dos Estados Unidos, o discurso sobre o Afrofuturismo passou a abranger a expressão de uma variedade de campos e múltiplos pontos em toda a diáspora e no continente africano. No Brasil, o interesse relativamente recente em se explorar o Afrofuturismo complementa os esforços pré-existentes para evidenciar produtores criativos negros do país, incluindo seus artistas, particularmente porque a maioria dos artistas afrodescendentes foram historicamente excluídos das principais exposições e estudos. No século XXI, acadêmicos e instituições expandiram seu foco de ressaltar o papel dos artistas negros brasileiros na história da arte nacional para como esses indivíduos se encaixam no quadro mais amplo da produção Afro-atlântica. Essa contextualização mais ampla ilumina como a arte e a escrita de Rubem Valentim (1922-1991) se relacionam com o Afrofuturismo. Um exame dos temas do espaço, da futuridade e da defesa da igualdade negra sugere a adequação do Afrofuturismo a uma leitura crítica das obras plásticas e do manifesto de 1976 de Valentim.
Afrofuturismo
Embora a maioria dos indivíduos tenha ouvido pela primeira vez a palavra Afrofuturismo em 2018, o termo foi cunhado décadas antes pelo crítico cultural norte-americano Mark Dery em seu ensaio De volta para o Afruturo (1993). Nesta entrevista publicada com os autores negros norte-americanos Samuel R. Delany, Greg Tate e Tricia Rose, Dery buscava definir um gênero de ficção especulativa que “trata de temas afro-americanos e lida com as preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século XX — e, de modo geral, a significação afro-americana que se apropria de imagens da tecnologia e de um futuro protético” (DERY, 1993, p. 736). Dery deu nome a um tipo de produção com diversas características comuns em que alguns produtores criativos negros já encontravam-se envolvidos há décadas. Posteriormente, passou-se a olhar para o início do século XX e a identificar vários indivíduos e trabalhos como proto-afrofuturistas. Assim, 1993 data o nascimento do termo, mas não da expressão afrofuturista em si. Nos anos desde o ensaio de Dery, acadêmicos também expandiram seu escopo de investigação para incluir campos além da ficção especulativa e locais fora dos Estados Unidos. A consideração de uma gama mais ampla de produção afrofuturista ajuda a explicar seu significado para a expressão negra de diferentes épocas e lugares.
No Brasil, o Afrofuturismo é um campo crescente de investigação e, até o momento, intelectuais e criativos têm se dedicado em grande parte ao cinema, à ficção especulativa e à música. Kênia Freitas é uma das principais líderes da discussão, tendo oferecido inúmeras oportunidades em São Paulo para diversos públicos conhecerem o Afrofuturismo e seus temas, principalmente através do cinema (FREITAS, 2015; CENTRO CULTURAL SÃO PAULO, 2021). Outros indivíduos-chave nesta sensibilização sobre o Afrofuturismo incluem Morena Moriah e seu podcast semanal Afrofuturo (MORIAH, 2021; BARRETO, 2019) e Fábio Kabral, autor de ficção especulativa (KABRAL, 2017; LEHNEN, 2021). Os brasileiros que escrevem e falam sobre Afrofuturismo têm focalizado principalmente a produção contemporânea nacional e internacional. Segundo Freitas, no entanto, Alma de Olho (1974), filme de Zózimo Bulbul, é uma obra de vanguarda afrofuturista que se “relaciona diretamente com a estética do movimento que veio a se constituir anos depois de seu lançamento”, afirmando assim que o trabalho brasileiro anterior também pode ser abrangido pelo Afrofuturismo (FREITAS in GARRETT, 2015).
O interesse dos brasileiros em explorar o Afrofuturismo complementa os esforços pré-existentes de chamar a atenção para o papel de produtores criativos afrodescendentes nacionais, incluindo seus artistas. Desde o final da década de 1980, vê-se um crescente número de exposições que apresentam o trabalho de artistas negros brasileiros, em grande parte devido aos esforços pioneiros do curador e artista Emanoel Araújo. Como a maioria dos negros brasileiros foi excluída dos círculos e instituições de arte dominante ou “branca”, pois seu trabalho não seguia os estilos e movimentos europeus que caracterizavam a produção artística no Brasil desde a fundação da Academia Imperial de Belas Artes, a ênfase foi destacar as contribuições desses indivíduos para a história da arte nacional. Mais recentemente, intelectuais e instituições expandiram seu foco para situar produtores criativos do século XX e XXI nos contextos nacionais e internacionais da expressão artística negra. Dois exemplos relativamente recentes incluem a exposição coletiva Histórias Afro-atlânticas (2008), e a mostra Rubem Valentim: Construções Afro-atlânticas (2018-2019), ambas organizadas pelo MASP.
A mostra Valentim exemplificou o que se pode ganhar ao olhar para artistas brasileiros do século XX em uma perspectiva mais ampla. O MASP teve como objetivo “reposicionar [Valentim] na história da arte brasileira e global… [tomando] uma abordagem mais ampla de seu trabalho, sublinhando seus aspectos políticos, religiosos e, acima de tudo, afro-brasileiros” (MASP, 2021). Seguindo esse objetivo, vários dos ensaios do catálogo da exposição demonstraram abordagens originais para analisar a carreira e o trabalho do artista, com especial ênfase afro-atlântica. Igualmente importantes foram as reproduções de material inédito de vários cadernos de Valentim datados do período 1960-1967 (OLIVA, 2018a, p. 24). Esses cadernos de esboço, mantidos em coleção privada, proporcionam uma visão inigualável sobre o processo do artista e lançam luz sobre a gama de influências internacionais de Valentim, particularmente no que se refere à sua exposição à arte africana enquanto vivia na Europa.
Esse cruzamento de examinar a obra de Valentim em sua relação à expressão artística negra internacional e usar o Afrofuturismo como lente através da qual observar uma produção criativa negra apresenta um momento oportuno para abordar um dos artistas mais importantes do século XX sob um ângulo diferente. Embora discutir Valentim no âmbito do Afrofuturismo possa soar anacrônico, o artista expressou interesses que hoje se tornaram aspectos frequentemente citados do Afrofuturismo. Considerações sobre os temas do espaço, da futuridade e da defesa da igualdade negra em relação às obras plásticas do artista e seu Manifesto Ainda que Tardio (1976), revelam que Valentim demonstrou certas características e preocupações afrofuturistas muito antes da formalização do conceito.
Rubem Valentim
Valentim nasceu em Salvador, Bahia, em 1922. Estudou odontologia e obteve seu diploma em 1946. Acabou por abandonar essa vocação, no entanto, por sua verdadeira paixão: a pintura. No final da década, seu trabalho foi incluído em exposições regionais. Valentim criou pinturas abstratas, que se baseiam predominantemente nas formas e símbolos da religião Afro-brasileira Candomblé, tendo estudado ativamente desde seus altares religiosos até seus instrumentos litúrgicos vendidos nos mercados locais (VALENTIM, 1967, p. 26). Apesar de sua inclusão em exposições baianas, Valentim frustrou-se com a falta de outros artistas locais trabalhando com o estilo abstrato e sua persistente precária posição econômica (VALENTIM, 1967, p. 25; VALENTIM 2001, p. 196). Em consequência, partiu para o Rio de Janeiro em 1957.
Logo depois, Valentim ficou conhecido nacionalmente por sua emblemática linguagem plástica com raízes no Nordeste brasileiro. Sua produção permaneceu ligada à Bahia principalmente através da linguagem visual dos sinais e símbolos do Candomblé (Fig. 1). Quando criança, frequentou tanto as missas da Igreja Católica como as casas de Candomblé com os familiares VALENTIM 2001, p. 189-193). Após sua mudança para o Rio, o artista continuou a inspirar-se no Candomblé, mas também passou a incorporar influências da Umbanda, religião de influência africana.
Os anos 60 foram um período significativo na vida de Valentim devido a sua exposição a uma variedade de povos e lugares. Em 1962, ganhou um prêmio de viagem ao exterior no XI Salão Nacional de Arte Moderna (RJ), o que lhe permitiu visitar vários países europeus. Viveu em Bristol e Londres, Inglaterra, durante o ano de 1963, enquanto sua esposa frequentava a Bath Academy of Art. Na primavera de 1964 mudou-se para Roma, Itália. Durante seu tempo no exterior, também visitou a Holanda, Alemanha, Bélgica, Áustria, Portugal e França. Valentim viajou para Dakar, no Senegal, como parte da delegação artística brasileira para o Primeiro Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana de 1966, onde expôs doze pinturas que produzira enquanto vivia em Roma. No ano seguinte, foi convidado para lecionar pintura no Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília e mudou-se para lá. Embora tenha deixado o cargo após pouco tempo, Valentim permaneceu na capital.
Ao contrário da maioria dos artistas negros brasileiros da época, a forma de expressão de Valentim, visualmente semelhante ao estilo vanguardista da arte concreta dos anos 1950, lhe rendeu aceitação nos principais círculos e instituições artísticas do país. Valentim reconheceu semelhanças entre a Arte concreta e sua própria abordagem abstrata e reducionista, mas afirmou que nunca foi um artista concreto (VALENTIM in MORAIS, 1994b, p. 78). Não obstante, nas décadas de 1960 e 1970, curadores e críticos de arte elogiaram seu “internacionalismo” não-figurativo que distinguiu sua produção do que consideravam as representações provinciais “folclóricas” de outros artistas baianos VALENTIM, 1970; VALENTIM 1978). O estilo emblemático de Valentim lhe rendeu inúmeros prêmios durante sua vida. O Museu de Arte da Bahia e a Pinacoteca do Estado de São Paulo possuem galerias permanentes de sua obra. Como artista negro, Valentim ocupou um espaço bastante único no mundo da arte brasileira, tanto durante sua vida quanto postumamente.
Espaço
A exploração espacial é um tema comum da expressão afrofuturista. Ela deriva do foco original de Dery na ficção científica e posteriormente se espalhou para outros meios à medida que o escopo do discurso afrofuturista crescia. Viagens espaciais e encontros com estrangeiros têm interpretações tanto fantásticas quanto reais. Os negros que foram sequestrados de suas casas no continente africano e enviados para terras estrangeiras como parte do comércio transatlântico de escravizados, por exemplo, podem ser considerados proto-“alienígenas”. Na maioria da produção afrofuturista, o espaço sideral apresenta uma alternativa às condições opressivas na Terra, salvaguardando assim a sobrevivência dos negros e da cultura Afro. Embora inegavelmente um tema comum que tem recebido muita atenção, mesmo nos Estados Unidos, nem toda a produção artística proto-afrofuturista incluiu referências ao espaço e às viagens espaciais (WOFFORD, 2017).
Valentim também se preocupava com o espaço, mas com o espaço terrestre, e, mais especificamente, o espaço brasileiro. Em seu Manifesto ainda que tardio, o espaço é mencionado duas vezes. Valentim escreve: “Atualmente, minha arte busca o Espaço: a rua, a estrada, a praça – os conjuntos arquitetônico-urbanísticos” (VALENTIM, 2001, p. 29). Mais abaixo, ele afirma: Minha arte tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencente ao povo. É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos, arquitetônicos, paisagísticos (VALENTIM, 2001, p. 30).
Valentim pensou que a melhor forma de garantir a continuidade das formas e signos negros brasileiros não era deixar a Terra ou mesmo seu país natal, mas introduzir suas obras nos espaços públicos cotidianos – fazendo uma arte “pertencente ao povo”.
Valentim provavelmente não se referia às suas pinturas aqui, mas sim a suas peças tridimensionais inspiradas em formas africanas e afro-brasileiras. Quando ganhou o prêmio de viagem ao exterior em 1962, Valentim indicou que pretendia viajar para diferentes países africanos para vivenciar a arte e as culturas, e estudar as fontes que influenciaram a arte brasileira (TRIBUNA DA IMPRENSA, 1962, p. 2; RODRIGUES, 1963, p. 5). Por fim, ele visitou vários países europeus. Não obstante, ele aproveitou para estudar a arte africana em diferentes coleções de museus enquanto estava no exterior. Os esboços de Valentim em seus cadernos mostram que ele tomou nota de uma ampla gama de peças africanas – como as máscaras placa dos Bwa da Costa do Marfim, as portas esculpidas dos Dogon do Mali, e as figuras de relicário dos Kota do Gabão, para citar alguns exemplos (Fig. 2).
Em 1966, Valentim foi à África por uma semana como parte da delegação brasileira ao Primeiro Festival Mundial de Artes e Cultura em Dakar. No recém-independente Senegal, o presidente Léopold Sédar Senghor criou o Festival para mostrar a arte negra de todo o mundo que empregava estéticas baseada nos princípios da Negritude (CLEVELAND, 2012). Valentim foi um dos três artistas cuja obra o governo brasileiro enviou para esta celebração internacional da “Negritude”. Em Dakar, ele viu seu trabalho exibido junto ao de artistas negros de toda a África e da diáspora africana pela primeira vez em sua vida.
Após retornar ao Brasil de sua experiência no exterior, a produção de Valentim sofreu dois desenvolvimentos importantes: primeiro, ele reconheceu o efeito que a exposição à arte africana teve em seu desenvolvimento artístico; e segundo, ele passou a criar peças tridimensionais. Em 1967, ele confirmou que sua busca para encontrar sua linguagem plástica foi “enriquecida [na Europa] através do contato direto com a grande arte negra nos museus” de lá (VALENTIM, 1967, p. 26). Um ano após retornar ao Brasil, Valentim expandiu sua forma de expressão por meio da experimentação primeiro com relevos emblemáticos, depois com objetos emblemáticos e, finalmente, com peças tridimensionais (Fig. 3).
Estas obras independentes aglutinam referências a formas africanas e afro-brasileiras. Uma comparação de esboços produzidos por Valentim no caderno Afro-Baianismo de 1964, quando de sua estadia em Roma, mostra semelhanças visuais entre seus desenhos das máscaras Bwa e seus planos para várias peças tridimensionais (Figs. 2,4). Em alguns dos desenhos, o artista anotou que as peças para suas obras deveriam ser feitas de madeira ou metal, semelhante às esculturas africanas. As máscaras placa de Burkina Fasso, chamadas Nawantantay, exibem padrões geométricos que compõem um sistema de signos e símbolos usados em iniciações. A combinação dos signos comunica uma “lição moral ou histórica” sobre o comportamento ético, bem como os “mitos da fundação dos clãs” (ROY, 2014). Além de notar a influência que a arte africana teve em seu desenvolvimento, Valentim também reconhece que se inspirou na “organização compósita, quase geométrica” dos altares religiosos ou pejis para suas obras tridimensionais (VALENTIM in MORAES, 1994b, p. 78). Tanto os exemplos africanos quanto afro-brasileiros usados pelos artistas transmitiam significado através de suas linguagens simbólicas e natureza geométrica.
O novo meio de Valentim em Brasília tornou-se uma fonte adicional de inspiração após sua experiência no exterior e extensa exposição à arte africana. Inaugurada como a nova capital do Brasil em 1960, Brasília se distingue por sua arquitetura branca e moderna e pelo traçado urbano inovador na forma de um avião – uma representação “futurista” para a época. Frederico Morais afirma que o “salto semântico para o 3D de Valentim só poderia realmente ocorrer em Brasília” devido a seu espaço urbano único e caráter religioso metafísico (MORAIS, 1994a, p. 41). Nessa atmosfera singular, o artista “imaginou que poderia situar seus objetos emblemáticos nos espaços verdes de Brasília, transformando-os em esculturas habitáveis, marcos da cidade”. Ao invés de ocupar apenas os espaços interiores de museus e galerias, as obras de Valentim habitariam o espaço exterior e se tornariam parte da paisagem urbana viva.
Futuridade
Como o próprio nome sugere, o Afrofuturismo está preocupado com o futuro. Segundo Ingrid LaFleur, uma forma de entender o Afrofuturismo é “imaginar futuros possíveis através de uma lente cultural negra”( LAFLEUR, 2011). Embora haja grande ênfase nos aspectos fantásticos da expressão afrofuturista, o Afrofuturismo pode também influenciar os resultados do mundo real. O Afrofuturismo não se preocupa apenas em garantir que os negros sejam parte do futuro, mas também como eles querem ver o futuro.
Uma análise de uma das esculturas públicas de Valentim – uma integração bem-sucedida de sua obra no espaço exterior – pode sugerir como o artista pretendia moldar visualmente o futuro do Brasil. A obra Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira (1978) encontra-se na Praça da Sé, próximo ao centro geográfico de São Paulo (Fig. 5). Roberto Conduru traça uma comparação entre a escultura vertical de Valentim e os “pelourinhos, uma vez instalados em praças públicas, onde pessoas escravizadas sofreram castigos físicos e foram deslocadas publicamente como exemplos para incentivar a submissão ao sistema escravocrata” (CONDURU, 2018, p. 60-61). O pelourinho de São Paulo ficava no Largo Sete de Setembro, a poucos minutos da atual Praça da Sé. Segundo Conduru, se entendermos a obra Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira como substituta dos antigos pelourinhos, então a escultura de Valentim “propõe um futuro diferente do que a história havia delineado até então” (CONDURU 2018, p. 61). Pelourinhos eram lembretes visuais da histórica dominação branca. O Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira serviu como prova do poder da cultura negra. Além disso, a “forma simbólica de expressão [do artista] era sobre o futuro”, pois traduziu uma linguagem visual regional para uma linguagem plástica mais acessível a um público mais amplo(CLEVELAND 2017, 219). Em sua forma e disposição, a arte de Valentim ajudaria a incentivar um caminho diferente para a nação em seu tratamento das influências africanas e dos indivíduos afrodescendentes.
Do ponto de vista do século XXI, as ideias de Valentim podem não se encaixar em uma agenda “futurista”. Essa aparente dissonância não é exclusiva à Valentim, mas faz parte das tendências dominantes sobre a futuridade em relação ao Afrofuturismo. Em 2019, por exemplo, Moriah apontou como as pessoas tendem a conceituar um futuro distante – época caracterizada por “inteligência artificial e carros voadores” – ao pensar no futuro, em vez dos próximos 10 ou 30 anos (MORIAH, 2019). A autora afrofuturista Ale Santos afirma que o Brasil contemporâneo já está no futuro dado sua segregação distópica e tecnológica e o acesso precário à infraestrutura moderna, incluindo a eletricidade” (SANTOS in DUARTE DE SOUZA/STROPASOLAS, 2020). Da mesma forma, Freitas e José Messias identificam o curta Chico (2016) não como uma “distopia futurística distante”, mas um filme que “trabalha especulativamente sobre a distopia do nosso [brasileiro] presente” (FREITAS/ MESSIAS 2018, p. 403). Imaginar futuros possíveis é mais do que simples fantasia; frequentemente envolve uma reação ao presente.
Para Valentim, o futuro tinha a possibilidade de destacar as influências africanas no Brasil e tornar sua presença mais visível na vida pública, cotidiana. Embora sua arte tenha sido bem recebida em vida, ele acreditava que apenas no futuro as pessoas realmente entenderiam o significado do que produziu. De acordo com o amigo e colega artista Bené Fonteles, “Uma vez ele me disse que no futuro a humanidade saberia o que sua obra realmente significa, e que cada uma de seus trabalhos abriria os portais da consciência para outra realidade, formando-se na mente e na alma de cada ser” (FONTELES in OLIVA, 2018b, p. 152). Não simplesmente uma arte pela arte, as peças de Valentim seriam transformadoras para a humanidade futura.
Simetria como Libertação Negra e Igualdade
A sociedade brasileira tem sido há muito atormentada por desequilíbrios de poder que deixam muitos negros ansiando por igualdade social, mesmo no século XXI. As ramificações da colonização no continente africano e da escravidão em toda a diáspora africana ainda são sentidas apesar da liberdade adquirida através da independência e da abolição. Mais do que simplesmente representações de naves espaciais e escapismo, o Afrofuturismo pode ser usado como ferramenta para a libertação e a igualdade negras. Em um artigo de 2018 sobre por que o Afrofuturismo tem forte presença entre os jovens negros brasileiros, Kiratiana Freelon concluiu que os “afro-brasileiros estão usando o Afrofuturismo para imaginar um futuro mais empoderado do que o que até eles chamariam de uma realidade de segunda classe” (FREELON, 2018). No mesmo artigo, Kabral afirma que “para esses jovens…o Afrofuturismo se tornou uma alternativa ao Eurofuturismo que nos é imposto diariamente” (KABRAL in FREELON, 2018).
Valentim também se preocupou com a libertação. A palavra Liberdade aparece várias vezes em seus cadernos (Fig.4). No entanto, Fernando Oliva assinala que a “prática política [de Valentim] não se manifestou de forma agressiva, pois não era um artista que carregasse bandeiras ou se unisse a grupos ou movimentos” (OLIVA, 2018a, p. 22). No entanto, Valentim possuía um ponto de vista político, que discutiu em 1982:“Defendo uma melhor distribuição da riqueza. Estou ansioso por justiça e equilíbrio social. Não é por acaso que a simetria está na base de minha linguagem construtiva; Busco o mesmo peso para ambos os lados” (VALENTIM in MORAIS, 1982, p. 32). Em seu manifesto e alhures, Valentim destacou a mistura cultural e racial da nação brasileira. Para o artista, “o branco total é um não-ser, idem o negro. Toda criação é mestiça” (VALENTIM in MORAIS, 1982, p. 32). Tanto em sua arte quanto em sua nação, Valentim desejava o equilíbrio.
O artista tomou o orixá Xangô como seu símbolo filosófico e plástico (Fig. 6). Valentim identificou-o como “ponto de partida para [sua] simetria” (VALENTIM in AYALA, 1968) e uma “forma fundamental de sua pintura” (VALENTIM, 1967, p. 26). Valentim frequentemente incorporou a forma do orixá – o machado duplo – em seu trabalho desde o início de sua carreira. Conduru sugere que a predileção de Valentim por certas formas tinha tons deliberados: “A alusão constante aos símbolos de Exú e Xangô, na Umbanda e no Candomblé, deidades da comunicação e da justiça, respectivamente, sugere que vemos a obre de Valentim como um manifesto público pela igualdade social, ressaltando assim sua dimensão política” (CONDURU, 2018, p. 57). Para o autor, não se tratava de um ou outro – Negro ou Branco – mas de igualdade.
Conclusão
Nos Estados Unidos e alhures, o discurso sobre o Afrofuturismo continua a se desenvolver, assim como o interesse em identificar exemplos adicionais de expressão afrofuturista. Olhar para trabalhos de vários lugares e épocas lança luz sobre semelhanças e diferenças, já que os produtores criativos trabalham em diferentes contextos. Explorações matizadas ressaltam como os indivíduos se envolvem com temas comuns de maneiras únicas.
A perspectiva e os desejos de Valentim, refletidos em seu manifesto, entrevistas publicadas e outras declarações, podem não parecer tão “progressistas” quanto algumas expressões contemporâneas do Afrofuturismo. Além disso, sua produção artística não demonstra todos os aspectos mais discutidos em trabalhos afrofuturistas. No entanto, os esforços no Brasil para inserir a produção de artistas negros em um contexto afro-atlântico mais amplo estão revelando conexões adicionais e suscitando novas questões, inclusive sobre o Afrofuturismo. Acadêmicos e artistas negros brasileiros estão liderando a discussão sobre o Afrofuturismo e abraçando-o como ferramenta de análise e compreensão da expressão negra. Onde talvez outros termos e rótulos originários de fora do país tenham contribuído para a marginalização dos artistas negros brasileiros, o Afrofuturismo é um meio empoderador não apenas para entender a expressão individual, mas também para compartilhar ideias, preocupações e influências de toda a diáspora e do continente africano.
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