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Palestras

As artes visuais como lugar íntimo da edificação de sonhos e da destruição dos pesadelos: Os olhares oblíquos sobre os processos formativos de artistas visuais da afrodiáspora

Aprender a inscrever sem escrever

Localizar as primeiras produções em artes visuais feitas por mulheres negras brasileiras com autoria. Identificar as materialidades e linguagens acessadas e dominadas por essas artistas visuais. Refletir sobre as abordagens temáticas que elas trouxeram a partir de suas vivências, de suas trajetórias, de seus contextos, de suas ascendências. Coletar informações que subsidiem uma leitura amplificada dessas mulheres artistas e de suas produções tangenciadas pelas condições de seus processos de criação de acordo com a sua educação informal, não formal e formal. Validar testemunhos do círculo familiar e social próximos a elas que se vinculam à tradição oral como fonte inquestionável de pesquisa. Encontrar obras de arte dessas artistas visuais em coleções particulares e públicas.

São esses os intentos e a metodologia que assumimos nas pesquisas acerca das mulheres artistas visuais de ascendência negro-africana no Brasil. Fenotipicamente negras, tiveram formações distintas que coincidem na marca decisiva da educação familiar como uma herança que contribuiu na edificação de suas aptidões e empenhos usados no ofício nas artes visuais.

Conferir visibilidade a essas artistas visuais implica, de imediato, no entendimento do desafio que é o acesso a uma possível documentação que permitiria o desvelar de informações biográficas, sobre processos criativos e as obras delas advindas.

Nesse ínterim, o acúmulo material como índice documental não possui centralidade nas narrativas de populações que distribuem esse papel entre outras fontes históricas imateriais como a fala, a dança, a cerimônia, o ritual, os modos de fazer e de viver, territóriosque possuem a mesma legitimidade como testemunhos sobre o passado. Esse ponto é nuclear na chamada “disputa de narrativas” que se acirrará em 2022, em virtude das efemérides que rememoram e revisam a Semana de Arte Moderna de 1922;porém,preferimos substituir o termo que pressupõe um grupo que vence e outro que é vencido por “coexistência de narrativas”.

Isso posto, as escritas acerca de mulheres negras no campo das artes visuais balizam-sepor outros índices factuais que superam o rigor acadêmico como pressuposto universal. Grada Kilomba analisa a universalidade como categoria supressora de uma noção de humanidade negra e, logo, de reconhecimento de outros paradigmas de pesquisa:

(…) o centro ao qual me refiro aqui, isto é, o centro acadêmico, não é um local neutro. Ele é um espaço branco onde o privilégio de fala tem sido negado para as pessoas negras. Historicamente, esse é um espaço onde tivemos estado sem voz e onde acadêmicas/os brancas/os têm desenvolvido discursos teóricos que formalmente nos construíram como a/o “Outras/os” inferior, colocando africanas/os em subordinação absoluta ao sujeito branco. Nesse espaço temos sido descritas/os, classificadas/os, desumanizadas/os, primitivizadas/os, brutalizadas/os, mortas/os. (HALL/ KILOMBA 2019, p. 50-51).

A crítica ao suposto universalismo como conceito suleador das pesquisas acadêmicas se estende à objetividade e neutralidade, formando uma tríade de controle de qualidade branca das pesquisas desenvolvidas. Pois bem: a estes renunciamos,vez que subscrevem uma propriedade acerca de um modo verdadeiro e correto sobre como apresentar, apreciar, pesquisar, narrar, criticar em artes visuais, porquanto tais conceituações atuam muito mais como crivo do que passa a constar na história que como conceitos estruturantes e imparciais dos mecanismos de escrita textual.

Interessa-nos esquadrinhar os processos de criação dessas mulheres, não apenas os relativos às suas obras, todavia de si, como artistas visuais, a partir das conjunturas em que estavam situadas em nossa sociedade, que reservou papéis fixos a serem desempenhados por mulheres afrodiaspóricas, muito tributários das imagens de controle exploradas por Patricia Hill Collins.

Ana das Carrancas (1923-2008), Madalena dos Santos Reinbolt (1919-1977), Raquel Trindade de Souza (1937-2018), nascidas em lugares geograficamente distintos, no entanto análogas no que se refere aos aprendizados obtidos da educação informal, situada no âmbito familiar; aprendizados que lhes serviram de escola e universidade para a apreensão de linguagens, técnicas, temáticas, conceitos e poéticas que inscrevem suas atuações em modos de existência que são reelaborações de sistemas-mundo de povos africanos no Brasil.

São trajetórias com suas singularidades,tendo na educação informal um ponto convergente da experiência de formação artística, com tecnologias e epistemologias ancestrais apreendidas com familiares e comunidades.Historicamente, questionadas pelos meios de educação formal enquanto conhecimento legítimo, esses saberes constituem um sistema educativo de fundamento ontológico e cosmológico que resvala no artístico e no estético, e que é subtraído ao ser confrontado ao conhecimento curricular tido como erudito.

Nesse sentido, simultaneamente, sendo a curadoria uma prática decisória e determinante na edificação de narrativas das artes visuais,advertimos ser ético exercitá-la a partir da multiplicidade do que vem a ser a arte como atividade profissional; do objeto proveniente das suas etapas; de quem é a pessoa profissional das artes visuais atenta à alternância de agentes no desempenho do poder.

Ana das Carrancas:
Parir o sonho pelo barro

Meu sangue é negro, mas minha alma é de barro” é uma das tantas frases de Ana Leopoldina dos Santos, que a une fisiológica e espiritualmente ao barro. Nascida em Santa Filomena, distrito de Ouricuri, cidade do sertão do Araripe, n oestado de Pernambuco, teve contato com o manejo da argila durante a sua infância através de sua mãe louceira, Maria Leopoldina dos Santos. Desenvolveu-se como ceramista, e também como comerciante de uma série de utensílios moldados pela família.

No Rio São Francisco, a artista visual buscava a matéria-prima para suas peças, ao mesmo tempo em que incorporava aos seus conhecimentos elementos fantásticos, místicos e artísticos presentes na cultura regional. O contato com inúmeros relatos instigantes sobre as carrancas das embarcações que navegavam o rio chegam até a artista visual,estimulando o seu imaginário e conduzindo a sua produção em cerâmica, que na década de 1960, converteu-se de funcional a poética:

[…] ao buscar a matéria-prima para suas peças às margens do Velho Chico, Ana criou sua primeira “gangula”, uma pequena embarcação em cerâmica, semelhante a um vaso de médio porte acompanhada de uma carranca em sua proa. (GUALBERTO, 2017, p. 2).

É a partir das gangulas que surgiram as primeiras carrancas de Ana Louceira. Sobre essas esculturas que povoam a tradição de navegantes, a pesquisadora Rosélia Sampaio de Miranda diz:

As carrancas do Rio São Francisco eram consideradas, a princípio, como esculturas de proa das embarcações […] abriam caminho protegendo a embarcação e os tripulantes, livrando-os de qualquer dificuldade presente no momento da viagem. (MIRANDA,2019, p. 2).

As carrancas congregam características conceituais, simbólicas, espirituais e formais que lhes conferem uma natureza sincrética e dinâmica. Encontramos várias populações que, em diferentes partes do mundo, acreditavam na potência sobrenatural das carrancas, ou de objetos que se assemelham a elas, para proteger tripulantes e afugentar malefícios no trato com as personalidades que habitam as águas, além de aplacar os humores dos mares e dos rios.

Na região do Rio São Francisco e nas culturas de povos ribeirinhos, de forma geral, sobrevive um rico repertório mitológico que se sincretiza com a crença no Deus católico como divindades protetoras. Para tais comunidades, são muitos os seres mágicos que habitam as águas do rio e que devem ser considerados e/ou reverenciados com o desígnio de se assegurar águas tranquilas à navegação, como o Minhocão, Surubim-Rei, Bicho d’Água, Cachorro d’Água, Cavalo d’Água, Capetinha, Galo Preto, Angaí, Anhangá e Goiajara (VALADARES/PARDAL/MIRANDA, 2019).

Um dos primeiros autores de carrancas de que temos informação nesta região por onde se estende o Rio São Francisco foi Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany (1884-1985), que aprendeu com o pai o ofício de marceneiro e de carpinteiro.

Nesse percurso, Ana Louceira foi notada por técnicos da Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), que se atentaram à qualidade de suas peças e lhe encomendaram gangulas em miniatura para serem distribuídas como lembrança por ocasião da inauguração da Biblioteca Municipal de Petrolina (GUALBERTO, 2017).

Estilisticamente, suas carrancas não reproduziam a expressividade agressiva e/ou temível que encontramos nessa tradição no Rio São Francisco, pois as suas figuras antropozoomorfas apresentam expressão facial fixa e séria: os lábios ligeiramente inclinados para baixo, as narinas infladas e grandes olhos com um orifício pequeno ao centro, fixados em direção ao horizonte. Essa solução formal que caracteriza o olhar das carrancas e dessa face replicada em outros objetos surgiu como um ex-voto de Ana das Carrancas: se José Vicente, seu companheiro despossuído do sentido da visão, não mais precisasse pedir esmolas para auxiliar no sustento da família, Ana “furaria” os olhos de todas suas peças em barro. (GUALBERTO, 2017, p. 3).

Desenvolver um estilo único na arte da cerâmica trouxe renome e recursos à Ana das Carrancas, concretizando seu sonho de prover a sua família do sustento material para viver dignamente.

A “Dama do Barro”, alcunha à sua altura, faleceu aos 85 anos de idade, em 2008, e sua arte e trajetória podem ser conhecidas a partir da visitação ao Centro de Arte e Cultura Ana das Carrancas, mantido pela Prefeitura de Petrolina com as presenças efetivas de suas filhas que, ao desempenharem também o ofício de ceramistas, consolidam três gerações de mulheres da arte do barro, cujos saberes informais foram determinantes no engendramento desses destinos, sobretudo pela inventividade singular de Ana das Carrancas.

Figura 1 Figura 1 Legenda

Ana das Carrancas, sd. Fonte: https://anadascarrancas.wordpress.com/ana-das-carrancas/

Madalena dos Santos Reinbolt:
O sonho por muitos fios

É possível termos um excelente retrato da infância de Madalena dos Santos Reinbolt, em Vitória da Conquista, na Bahia, ao nos depararmos com as suas obras, que consideramos inclassificáveis quanto às escolas artísticas preexistentes, e primorosas quanto à composição e linguagem das tramas em linhas que a notabilizou. Em seus trabalhos, inicialmente executados a óleo, encontramos a fartura de alimentos das roças, a exuberância da natureza modificada pela agricultura, a diversidade da fauna domesticada, os festejos comunitários, a vida num ritmo ordenado pelas horas indicadas nos cursos do sol e da lua.

Vinha de uma família extensa, com 21 filhos e filhas.Ao conhecermos seu cotidiano —a matriarca acordava às quatro da manhã para iniciar seus afazeres —, percebemos a quantidade de domínios técnicos necessários à manutenção de uma propriedade rural de médio porte. Pai e mãe administravam a fazenda, criando e engordando animais para uso de seus derivados e venda; cultivando roças de arroz, feijão e milho; fabricando manteiga, defumando e preservando as carnes, o que evidencia certa abastança.Ela era ciente do conhecimento técnico da sua raiz, sobretudo de sua mãe, o que atinamos quando falava de sua educação:

Meu pai era fazendeiro lavrador. Minha mãe fazia loiça de barro, fazia renda, fazia cobertor, tocava algodão com a roda e fazia roupa para a casa inteira. Roupa de cama, saco, terno pros meu irmão, roupa de cama para nós, muitas coisa (sic). Levantava 4 horas da madrugada e tocava roda de fuso, com a mão fazia os novelão de linha, sim senhora, ela mesma, Ana Maria de Souza Pereira, e depois mandava tecer na tecelona. (REINBOLT/FROTA,1975, p. 114).

Esse saber específico para o cumprimento e manutenção de uma rotina que promovia o sustento e a sobrevivência também possuía um viés estético que se exprimia no moldar os utensílios domésticos; no entrelaçar os desenhos da renda; no coser os trajes dos entes; todas, atividades cumpridas por sua mãe.Tudo isso foi absorvido por Madalena dos Santos, que enquanto criança pintava sobre jornal e extraía o sumo das plantas para aplicar como tinta sobre o papel (FROTA, 1975).

Com cerca de 20 anos, migrou em busca de autonomia financeira, passou por Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e, por fim, pousou em Petrópolis, em 1949 (FROTA, 2005). Há controvérsias sobre sua ocupação na Fazenda Samambaia, da arquiteta Lota Macedo Soares e da escritora Elizabeth Bishop, porém tudo indica que lá tenha sido cozinheira, e seu marido, de quem herda o sobrenome de origem alemã, Luiz Augusto Reinbolt, o caseiro com quem se casou em 1952.

Ao notarem sua aptidão artística, Lota e Elizabeth incitaram-na a praticar a pintura com constância, o que se deu a partir de 1950. Contudo, nas outras residências em que Madalena trabalhou, nos entremeios das tarefas domésticas, ela bordava, confirmando um imperativo vital de sua verve criadora:

(…) sentada na sua cama, com as 154 agulhas enfiadas de lã dentro de uma bacia, numa banqueta ao seu lado (…). Os patrões permitem que ela venda os tapetes nessa casa de campo onde há trabalhos seus na parede, de propriedade da família. (FROTA, 1975, p. 123).

Observamos que a carreira da artista foi ora impulsionada, ora freadapelas pessoas que a empregavam. Sem liberdade física, por não ter reunido recursos para ter sua morada e, logo, seu ateliê, Madalena dos Santos Reinbolt teve em suas invenções o refúgio para essa situação.

Sobre seu processo criativo, elaborava as composições na mente, sem estudo prévio:“Faço no pensamento. Já vejo aquilo até com o olho fechado […] O que pensar vou escrevendo. Vou fazendo os planetas da minha cabeça”. (FROTA, 1975, p. 114).

Há em suas obras uma intimidade com as relações entre as cores que se agudiza pelo fato de todos os elementos representados compartilharem de um mesmo plano, sem a canônica composição que distingue figura e fundo na composição.

Na hierarquia das técnicas e das linguagens no âmbito das belas artes, o bordado e/ou a tapeçaria não ocupam posições nobres, conferindo às obras elaboradas nessas linguagens o controverso status de artesanato ou artes aplicadas. Desde o Renascimento, são consideradas artes menores e habilidades desejáveis às mulheres educadas para casar e constituir família, objetivando atender as obrigações do lar; é com a Revolução Industrial, o avanço dos mercados têxteis e a revalorização da manualidade como premissa do movimento Arts and Crafts que se enunciam algumas alterações nesse estatuto (SIMIONI,2009).

Intuitivamente, Madalena subverteu essa expectativa social ao conferir outro desígnio à técnica aprendida de sua genitora. Se para a mãe o costurar e bordar atuavam no script das demandas domésticas, para Madalena o seu uso era inventivo e artístico. Na mesma época em que migrou da pintura para as linhas de lã, no início de 1970, artistas visuais feministas também assumiram as práticas têxteis ditas femininas com o intuito de questionar os cânones, o status masculino e branco atribuído à profissionalização nas artes visuais, imprimindo um posicionamento político aos usos da linguagem:

Um terceiro momento na relação entre artes, têxteis, sobretudo os bordados, e a questão do gênero ocorre a partir dos anos 1970, nos EUA, com o advento do feminismo. Trata-se não mais de aceitar as hierarquias artísticas dominantes e esforçar-se por integrar as obras têxteis, vistas como essencialmente femininas, dentro do campo dominante, mas fazer algo mais ousado: subverter o cânone. (SIMIONI, 2009).

A incorporação das tecnologias antes relegadas às mulheres ao campo da criação artística como estratégia feminista liberal é contemporânea às discussões sobre o feminismo negro no Brasil, lideradas por Lélia Gonzalez à época. Seus estudos denunciaram a subempregabilidade das mulheres negras, apontando 83% delas em ocupações manuais, concentradas nas regiões agropecuárias e nas prestações de serviços nos centros urbanos (GONZALEZ, LIMA e RIOS, 2020). Esse panorama elucida parcialmente o modesto reconhecimento financeiro de Madalena dos Santos Reinbolt como artista visual em vida, pois intersecciona sua condição de existência em relação aos paradigmas das artes visuais instituídos às categorias classe, raça e região.

Diferentemente de Ana das Carrancas e de Raquel Trindade de Souza, Madalena dos Santos Reinbolt não gerou descendentes a partir de seu matrimônio, o que incide na preservação de seu legado e memória.

A artista tecelã merece uma investigação apurada sobre sua existência e persistência para ser entendida como artista visual, apesar das circunstâncias supracitadas. Sua inserção na historiografia póstuma, com participação na Bienal de Veneza, em 1978, estudos sobre sua obra em inúmeros livros de arte e, gradativamente, uma reeducação da crítica para apreciar a qualidade única de sua tapeçaria de composição dinâmica, colorida e sem precedentes na arte brasileira, é ainda acanhada.

De outra forma, artistas do estatuto de Madalena dos Santos Reinbolt permanecerão apequenadas por subcategorias da arte que determinam a visibilização, comercialização e historicização de produções avessas aos cânones vigentes. Fortunas críticas como a dela, ao serem analisadas devidamente, sabotam as castas sedimentadas no campo artístico e honram as artes visuais como expressão criativa intrínseca a todas as humanidades.

Figura 2 Figura 2 Legenda

Madalena dos Santos Reinbolt, sd. Fonte: FROTA, Lélia Coelho. Mitopoéticas de 9 artistas brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.

Figura 3 Figura 3 Legenda

Madalena dos Santos Reinbolt. Lagoa de março, 1974. Fonte: FROTA, Lélia Coelho. Mitopoéticas de 9 artistas brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.

Raquel Trindade de Souza:
O sonho é agora

Pernambuco é um dos primeiros berços da população afro-brasileira, local onde desembarcaram da África os primeiros grupos étnico-culturais banto. Grosso modo, o banto está para as culturas desse continente assim como o latim está para os europeus. Não se restringe a um troncolinguístico, ampliando-se para valores socioculturais compartilhados por populações que se distribuem pela África Central. Ao abordar a multiartista Raquel Trindade de Souza, primogênita do poeta Francisco Solano Trindade e da terapeuta ocupacional Maria Margarida Trindade, é propício um preâmbulo que situe o território de origem da família e a ancestralidade africana nele enraizada.

Nascida em Recife, Raquel Trindade foi criada num ambiente diverso culturalmente, o que lhe permitiu muitos aprendizados, que podemos avistar dentre as atribuições profissionais que desempenhou. Diversamente de suas contemporâneas já introduzidas, sua família se orientou por valores civilizatórios africanos, disseminando a consciência de classe e de raça entre as comunidades negras com que residiram.

Sua mãe e pai promoviam encontros do Partido Comunista em sua residência, e Solano Trindade fundou a Frente Negra Pernambucana, em Recife, na década de 1930; ou seja, a consciência da família acerca do lugar social que ocupava se articulava com o ativismo como tática.

Na década seguinte, os Trindade se instalaram no Rio de Janeiro.O pai de Raquel, que na ocasião já escrevia, tornou-se uma pessoa popular entre intelectuais e artistas que frequentavam o célebre bar “Vermelhinho” (TRINDADE, 2008). Raquel Trindade acompanhava seu pai nas andanças pela cidade e esses trajetos lhe permitiram conviver com personalidades de grande relevo para a edificação da cultura afro-brasileira, como são os casos da dançarina Mercedes Baptista, pioneira na pesquisa e convergência de elementos coreográficos presentes nos ritos dos orixás com o baléclássico, ou ainda o maestro Abigail Moura, que conduziu operação similar no campo da música erudita, criando a Orquestra Afro-Brasileira.

A Raquel pintora também sofreuforte influência de artistas que viviam ou estiveram por Embu das Artes desde que os Trindade adotaram essas terras na década de 1960. Pessoas de origens diversas, inclusive estrangeiras, se utilizaram de diferentes técnicas, das bidimensionais às tridimensionais, na elaboração das suas obras, e se alimentaram dos diálogos proporcionados por esse ambiente.Entre elas está a família Silva, da qual provinham Maria Auxiliadora e seu irmão Vicente Paulo, um dos parceiros de Raquel Trindade de Souza.

Essa profusão de profissionais da cultura em derredor do centro histórico da antiga Aldeia de M’Boy compunha a coletividade incipiente da feira de arte que ainda ocorre aos finais de semana na cidade, de maneira similar à Feira de Arte da Praça da República, no centro de São Paulo.

Na década de 1970, junto das fundamentais iniciativas das feiras como recurso de exibição e comercialização de obras de artistas à margem das instituições culturais hegemônicas, coexistiram ao menos três grupos de artistas que, historicamente, estão classificados como naïfs, e que impulsionaram estudos mais comprometidos sobre essa circulação: o chamado “grupo de Osasco”, voltado ao registro da cultura do interior, ou temas “caipiras”; o grupo de artistas migrantes do Nordeste, e o já introduzido grupo de Embu das Artes (FROTA,1975).

A Raquel pintora foi nutrida politicamente por esses movimentos de artistas que forjaram a sua profissionalização por meios menos sistemáticos e excludentes, e artisticamente por trabalhadores e trabalhadoras da arte ungidos de coragem e autenticidade que inventaram formas de subsistir da arte a partir deuma profusão de estilos pulsantes, aparelhando-se em um outro sistema das artes visuais.

Num primeiro momento, as suas pinturas a óleo se assentaram na temática afro-religiosa, evocando itãs que registram e distribuem via oralidade as histórias de orixás.A “Kambinda”, como gostava de ser chamada em alusão à nação matrilinear Cabinda, de Angola (SANTOS, 2021), recusava intensamente ter as suas obras abarcadas no gênero naïf: “Não gosto de ser chamada na pintura nem de naïf nem de primitiva, minha pintura é afro-brasileira” (TRINDADE, 2013, p. 59).

Raquel Trindade de Souza desenvolveu com fluidez a sua atividade como pintora em Embu das Artes, juntamente com todas as demais funções que a afamaram. Realizou sua passagem em 2018, após uma cirurgia, tendo seu enterro seguido por um cortejo que reuniu vários grupos datradição no Teatro Popular Solano Trindade, que conduziu em continuidade e homenagem a seus pais. Em 2021, a exposição individual Ocupação olhares inspirados: Raquel Trindade, rainha Kambinda, em São Paulo, perpassou décadas de sua produção em pintura, congregando obras e subsídios que ofereceram ao público o entendimento pleno de sua herança cultural.

Figura 4 Figura 4 Legenda

Raquel Trindade de Souza, sd. Acervo da Família Trindade

Sonhos sonhados pelas nossas antepassadas

Conhecer essas narrativas é a afirmação de que há protagonismos de mulheres negras nas artes visuais, e de que tais histórias devem estar registradas e analisadas a partir de outros paradigmas, estimulando a expansão do processo de reeducação do olhar para as artes visuais.

Naturalizar o falarsobre realidades negras é um processo de descolonizar a vista, a mente, o gosto que se treinam, no agora, para ver o objeto artístico pelo viés original, criativo, íntimo, que desvenda “a sujeita” para entender o uso que faz das linguagens no direito legítimo e político de existências que devem ser apreciadas, escutadas, apreendidas pela lente da adoção de outros modos de ser. Estamos em pleno curso do rompimento com a colonialidade do criar.

Referências

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FREIRE, M. S. L. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

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HERKENHOFF, P. Invenções da mulher moderna: para além de Anita e Tarsila. Curadoria Paulo Herkenhoff. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2017.

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MALUNGUINHO, E.Erica Malunguinho, na luta contra o racismo e o patriarcado. [Entrevista cedida a] Taís Ilhéu. Acervo Online. Le Monde Diplomatique Brasil, 19 dez. 2018.Disponível em: https://diplomatique.org.br/enquanto-nao-houver-emancipacao-para-os-que-estao-ainda-negociando-a-vida-nao-havera-para-ninguem/. Acesso em: 28 fev.2022.

MESTRE GUARANY. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.SãoPaulo:ItaúCultural,2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa216535/mestre-guarany. Acesso em: 28 fev. 2022.

MIRANDA, R. S. de. O desenho das carrancas e seus significados. In: XIV SEMINÁRIO DE DESENHO CULTURA E INTERATIVIDADE, 14., 2019, Feira de Santana. O pensar desenho: reflexões culturais e interdisciplinares. Feira de Santana: UEFS, 2019.

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PEDROSA, A.; RJEILLE, I.; LEME, M. (org.). Histórias de mulheres, histórias feministas. São Paulo: MASP, 2019.

SANTOS, R. A. F. dos. Saudação à Rainha Kambinda. In: FELINTO, R. Olhares inspirados: Raquel Trindade – Rainha Kambinda. São Paulo: SESC 24 de Maio, 2021. p. 14-23. Disponível em: https://issuu.com/sesc24demaio/docs/folder_olhares_issuu-menor. Acesso em: 28 fev. 2022.

SILVA, E. C.da; FELIPE, D. A.Tapeçarias de Madalena dos Santos Reinbolt: identificação de arte e artista popular. Conhecer: debate entre o público e o privado, v. 9, n. 23, p. 94-123, 2019.

SIMIONI, A. P. C. Nas tramas do gênero: os bordados nada femininos de Rosana Paulino e Rosana Palazyan. ANPOCS, Caxambu, 2009. Disponível em:https://www.anpocs.com/index.php/papers-33-encontro/fr/fr07/2237-fr07-anapaulasimioni/file. Acesso em 28 fev. 2022.

SOUZA, R. T. de. Raquel Trindade – a Kambinda. In: Mulheres negras contam sua história. Prêmio Mulheres Negras contam sua História. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2013. p. 46-61.

Figura 1 Figura 1 Legenda

Ana das Carrancas, sd. Fonte: https://anadascarrancas.wordpress.com/ana-das-carrancas/

Figura 2 Figura 2 Legenda

Madalena dos Santos Reinbolt, sd. Fonte: FROTA, Lélia Coelho. Mitopoéticas de 9 artistas brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.

Figura 3 Figura 3 Legenda

Madalena dos Santos Reinbolt. Lagoa de março, 1974. Fonte: FROTA, Lélia Coelho. Mitopoéticas de 9 artistas brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.

Figura 4 Figura 4 Legenda

Raquel Trindade de Souza, sd. Acervo da Família Trindade

  • 1V.COLLINS, 2019
  • 2“Alternância de poder”: termo utilizado e popularizado pela deputada estadual Érica Malunguinho, pernambucana, negra, mulher transgênera eleita pelo Estado de São Paulo, PSOL, em 2018, a fim de pontuar que as modificações estruturais que oportunizem equidade entre os diferentes grupos humanos constitutivos da população brasileira, somente se efetivará na ocupação de cargos políticos por cada um deles, em um sistema de rotatividade das posições de poder. (ILHÉU, 2018).
  • 3Os técnicos em turismo Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo a serviço da Fundarpe – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (GUALBERTO, 2017, p.2).
  • 4Sobre o bordado como técnica artística ver SIMIONI, 2021.
  • 5Em outubro de 2021 o SESC 24 de Maio organizou a exposição Ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Kambinda, sob curadoria da equipe dessa unidade e de Renata Felinto, no núcleo histórico.