Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e da ausência dos documentos (LE GOFF, 1990, p. 107).
O museu, seu acervo e projeção de poder
Criada pela recentemente empossada Diretoria MAC USP e realizada em parceria com a estadunidense Getty Foundation, uma oportuna iniciativa ofereceu circunstâncias para que em 2021, entre outras coisas, três curadores com distintas formações — trajetórias —, que atuam em diferentes regiões do país, a saber: a Profa. Dra. Diane Lima, do Nordeste; o Prof. Dr. Igor Simões, do Sul; e este pesquisador, que escreve do Sudeste, se aproximassem do acervo do museu. Nessa condição lhes foi facultada a oportunidade de investigar, no considerável acervo da decana instituição paulistana, aquelas produções artísticas realizadas por afrodescendentes, derivadas ou pertencentes à cultura da afrodiáspora. Fato relevante e constitutivo do projeto é que, em comum, os curadores convidados dividem a afrodescendência como condição étnica e o status proletário como distintivo de classe.
A sugestão sobre a composição racial, de gênero e classe do grupo esteve, como veremos, em acordo com os propósitos do projeto, e pelo menos uma conclusão decorre desse fato: coerente com a sua história, a atual Diretoria, significativamente composta por mulheres, mostra-se sensível aos apelos do seu tempo, notadamente daqueles que, no presente, tentam garantir a efetividade das políticas que aprofundam nossa ainda incipiente democracia num cenário até aqui marcado por histórica e estrutural desigualdade de raça, gênero e classe.
Assim, através do trabalho desses curadores, o MAC USP revisita a sua própria trajetória à luz de uma sensibilidade que se pretende crítica e decolonizante, por isso menos avessa a uma concepção de história que se quer hegemônica, mas que — por heteronormativa e branca — é também politicamente conservadora, ou francamente reacionária, sendo, portanto, excludente; e, à vista disso, racista, misógina, trans e homofóbica.
No entanto, é possível que, contrapondo-se a valores de caráter conservador, apresentem-se subversivamente nas frestas da história certos arranjos éticos e estéticos lastreados numa moral divergente, de solidariedade e alteridade. Um ideal que revolucionariamente sinalize respaldo a um grupo oprimido, como parece ser o caso de certa fração da obra do judeu lituano naturalizado brasileiro Lasar Segall (1889-1957), da alemã Käthe Kollwitz (1867-1945) e, quem sabe, do brasileiro Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), para ficarmos em três artistas pertencentes ao acervo do MAC USP.
O florescente interesse das instituições de arte e cultura sobre a produção artística e intelectual afro-brasileira não atende (ou apenas reflete) as solicitações do mercado que, caracteristicamente ávido por novidades, enxerga na produção das minorias uma janela de oportunidades para incremento da própria expansão. As ideias em torno do mercado não comportam simplificações já que ele é, em certo sentido, um microcosmo, uma fração que reflete estruturas bastante complexas que regem e organizam a própria sociedade.
Relativamente ao interesse vigente pela produção simbólica de populações excluídas cabe salientar, no entanto, que existe uma correlação entre esse interesse e o recrudescimento da histórica luta dos oprimidos por seus direitos civis básicos.
Como trabalhadores, artistas e produtores culturais enfrentam situações que afetam o modo como produzem e o tipo de obra que realizam, estão submetidos a condições históricas objetivas, a partir das quais seu trabalho é realizado, não apenas como resultado dessas condições, mas também como crítica e reação a elas.
No longo processo de escravização a que foram submetidos, negras e negros tiveram sua produção simbólica negligenciada ou reprimida. A desconsideração permanece até que condições políticas acabem por criar visibilidade ao trabalho desses autores.
Assim, é razoável reconhecer que a posição social das maiorias minoradas está também refletida na forma como elas são ou não representadas nos museus — não só nos acervos, mas, principalmente, nos cargos de prestígio da sua administração. E que, por exemplo, um feminismo essencial às mulheres é resultado das lutas delas contra quem as oprime, e é o feminismo que cria meios para o empoderamento daquelas mulheres que detêm os predicados que as credenciam aos cargos que hoje, paulatinamente, ocupam; e nesses lugares elas têm criado condições que dão voz a outros excluídos.
O movimento Black Lives Matter de 2020, detonado pelo cruel assassinato do afro-americano George Floyd por um agente de segurança do Estado, em Washington, tem múltiplos precedentes históricos tanto lá, nos EUA, onde nasceu, quanto aqui, no Brasil, onde ainda agora ecoa. Movimentos similares podem, aliás, ser observados entre outros grupos sociais oprimidos, como entre os povos originários, os ribeirinhos e demais corpos divergentes (um arco, a propósito, bem grande, em que cabe quase tudo que não for branco, masculino, esbelto e burguês).
Se mencionamos a recrudescência gradativa desses processos sociais emancipatórios é porque, quando eles escapam ao cancelamento epistemicida a que geralmente estão sujeitos, robustecem o repertório dos eventos magnos que reforçam e implementam uma história que passa a ser protagonizada pelo oprimido, agora emancipado. Não foram poucas as produções artísticas ou acadêmicas que, a pretexto de celebrar efemérides caras às maiorias minoradas, foram relevantes a ponto de tornarem-se, elas mesmas, marcos centrais da história do grupo que elas justamente procuram resgatar.
Em 1988, o ambientalista e seringueiro Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, foi assassinado com um tiro na porta de sua casa, em Xapuri, no Acre, prova incontestável de que a luta que pôs fim ao ciclo autoritário cívico militar que vigorou entre nós estava longe (como ainda está) do melhor desfecho. Apesar disso, em outubro do mesmo ano, o processo de redemocratização culminou com a proclamação pela Assembleia Nacional Constituinte de uma nova Constituição brasileira, conhecida como Constituição Cidadã.
É nesse contexto de grande mobilização social que, durante as celebrações do Centenário da Abolição, também em 1988, foi inaugurada no MAM a enciclopédica e ainda hoje referencial exposição A Mão Afro-brasileira: Significado da contribuição artística e histórica. Organizada pelo artista plástico e curador negro e baiano Emanoel Araújo, a exposição legou à posteridade um valioso catálogo, no qual foram compilados, de maneira inédita, conhecimentos até ali dispersos sobre vários aspectos da cultura dos afrodescendentes brasileiros.
Essa exposição de 1988 é tanto mais importante porque lançou as bases para o que viria a ser o pioneiro Museu Afro Brasil, criado e dirigido em 2004, na cidade de São Paulo, pelo mesmo Emanoel Araújo.
Nessa conjuntura, como parte das celebrações do centenário da Abolição e ainda sob a coordenação de Emanoel Araújo, aconteceu, nas galerias da Pinacoteca do Estado de São Paulo, a significativa exposição Pintores Negros do Oitocentos cuja curadoria esteve a cargo do Prof. José Roberto Teixeira Leite.
Entre outros méritos essa mostra revelou, ou reforçou, as ideias em torno da competência da “mão afro” que se estendia por domínios que o preconceito não admitia que ela alcançasse. Ali, a excelência da produção artística de acadêmicos negros foi sobejamente comprovada e aqui, em São Paulo e no Sul do país, onde a produção dos artistas nordestinos é ainda menos conhecida, saiu agigantada da mostra a figura do baiano Manoel Raimundo Querino.
Negro, nascido livre em 1851, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, ele foi um polímata, arquiteto sem diploma, pintor premiado cujas obras se perderam; foi professor de Desenho Geométrico do Liceu de Artes e Ofícios em Salvador e no colégio dos Órfãos de São Joaquim; foi, igualmente, um destacado abolicionista, republicano e militante da causa operária, tendo sido um dos fundadores do Partido Operário da Bahia em 1890. Criou jornais e foi, entre nós, precursor da antropologia, além de historiador da arte da Bahia. Tudo isso num cenário profundamente marcado pelo racismo e pela militância aguerrida dos defensores da eugenia, pseudociência racista que propugnava a superioridade dos brancos sobre as demais raças. Os aguerridos eugenistas brasileiros — que, entre outras coisas, propunham a extinção dos negros pelo branqueamento da população — estavam encastelados nas academias, notadamente nas escolas de Direito e Medicina e nas redações dos jornais e revistas. Esse movimento, aliás tentacular, rendeu pelo menos uma obra de arte que é central à nossa história, A Redenção de Cã, pintada pelo espanhol Modesto Brocos, em 1895, que pode ser apreciada no Museu Nacional de Belas Artes que a salvaguarda, no Rio de Janeiro.
Manoel Raimundo Querino morreu em 1823, um ano depois do escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) e da Semana de Arte Moderna de São Paulo, realizada em fevereiro de 1922. As teses de Querino estão contidas em obras como Artistas baianos – indicações biográficas”, de 1909, As artes na Bahia – escorço de uma contribuição histórica, também de 1909, A raça africana e seus costumes na Bahia, de 1916, e O colono preto como fator de civilização brasileira, de 1918.
Se o pioneirismo representado pela produção intelectual de Manuel Raimundo Querino é pouco conhecido, principalmente pela inteligência acadêmica sudestina, isso se deve, sobretudo, à maneira como as instituições de ensino superior se constituíram no Brasil, e como elas, partindo dessa constituição, refletem o poder político e econômico do grupo social que as promove. O racismo e a misoginia que recusa a negras, negros, indígenas e mulheres um papel protagonista na história é consequência desse percurso. Não é por acaso que muitas instituições de ensino superior só de maneira reticente implementam políticas de cotas. Isso traz evidentes reflexos na produção das narrativas da história, que vai considerar os excluídos como coadjuvantes, meros objetos de um interesse pitoresco ou exótico, a não ser quando são, metaforicamente, promovidos, passando a servir aos interesses daqueles que procuram forjar símbolos de uma identidade nacional, visando a manutenção do poder das elites. Como no segundo Império, que promoveu simbolicamente o indígena, ou como no período em que vigorou a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, que cooptava artistas populares, geralmente sambistas, para promover os ideais do regime. Essa é uma das chaves da história que estabeleceu políticas a partir das quais os acervos de alguns dos nossos museus são constituídos: esses acervos comporão mosaicos de imagens que espelham nas paredes dos “cubos brancos” uma branquitude que reflete apenas a própria razão branca que lhe dá sentido.
Manuel Querino, Lima Barreto, os irmãos e pintores João e Arthur Timoteo, protagonizaram um tipo de sensibilidade moderna que não comparece ao cânone promovido desde São Paulo a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, e suas origens raciais e sociais não podem ser ignoradas quando consideramos essa ausência. Eles foram contemporâneos do jornalista, crítico e escritor carioca Luiz Gonzaga Duque Estrada (18631911), conhecido no meio literário como Gonzaga Duque. Filho de família abastada, descendia de suecos pelo lado materno, foi o autor de A Arte Brasileira, que se constituiu em importante tentativa de verificar os processos de desenvolvimento da arte brasileira desde o período colonial até a época em que foi publicado, em 1888. Para além desse estudo, Gonzaga Duque publica, em 1910 Graves e Frívolos, nova investida no universo da história da crítica de arte. Gonzaga Duque ainda publicou, em 1900, o notável romance de caráter simbolista Mocidade Morta. Partindo do cotidiano de um grupo de personagens boêmios inspirados em artistas, críticos, burgueses e aristocratas do período em que o artista viveu, misto de crônica de costumes e crítica social, o romance traz uma vívida, mas rebuscada narrativa que ficcionaliza a cena artística do período.
Tadeu Chiarelli, que lecionou no Departamento de Artes da USP, foi curador chefe do MAM/SP (1996–2000), diretor do MAC USP (2010–2014) e da Pinacoteca do Estado de São Paulo (2015–2017), foi um dos responsáveis pela introdução de Gonzaga Duque nos estudos acadêmicos. Como demonstrou em seu texto de introdução à reedição de 1995 da obra Gonzaga Duque, Gonzaga-Duque: A Moldura e o Quadro da Arte Brasileira, o crítico de arte permanece indispensável aos estudos dedicados à arte do período Isso, no entanto, não implica consagrá-lo como a única voz autorizada a depor sobre essa história.
É notável que nas páginas do seu A Arte Brasileira, Gonzaga Duque mencione, em tons quase sempre elogiosos, os trabalhos de artistas afrodescendentes, notadamente os de Estevão Roberto da Silva (18441891), talvez o mais relevante pintor negro do período e sem dúvida, um dos melhores pintores do gênero “natureza morta” entre todos os demais.
Reveste-se de interesse o fato de que, enquanto professor do Departamento de Artes da USP, Chiarelli tenha sido “divulgador” da obra de Gonzaga Duque, tendo-a apresentado aos seus alunos — entre eles, este que escreve. Para alguns de nós, aquela foi a primeira menção aos artistas negros que atuavam no âmbito da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro no século XIX.
Como diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Chiarelli realizou importante gestão no sentido de valorizar a produção artística afro-brasileira e afrodescendente, e ensejou uma política de aquisição de obras para esses artistas. Nisso ele foi precedido pelo artista e curador Emanoel Araújo.
Dessa prospecção a referências afrodiaspóricas no acervo do MAC USP, resultam as intersecções entre política, diversidade e arte, a administração da difusão e circulação desta última e o papel indissociável da educação nesse processo.
As ações que a educação (matéria interseccional por excelência) promove — ou, se quisermos, os debates em torno das questões impostas pela arte-educação a partir dos museus — continuam indispensáveis a um contexto no qual muito pouco se realiza para promover políticas públicas que tornem acessíveis os conhecimentos construídos a partir daquilo que os acervos dos nossos museus nos oferecem.
Educação
Compreende-se que a arte é um produto social que pode contestar ou confirmar através da sua projeção simbólica, que logra realizar a predominância de um grupo, classe ou gênero sobre outros. Não é, portanto, mero acaso que frequentemente ela esteja salvaguardada em edifícios cujos partidos arquitetônicos corroboram o gosto da classe que os projetou. Se isso é verdade, é também verdadeira a tese segundo a qual o exercício da curadoria é uma atividade politicamente comprometida, já que os arranjos das obras, associadas a outros fatores (como, por exemplo, a já mencionada arquitetura do espaço que as abriga), confirmam uma opção que é destacada em detrimento de outras. Essa escolha, política, traduz-se em pedagogia, numa realização que agrega métodos e práticas que tornem acessíveis um conteúdo que se suponha útil à assimilação de um público específico.
É crítico o exercício da curadoria que se entende igualmente como exercício de pedagogia, como exercício de educação que explora o conteúdo das obras para a construção de conhecimento.
A atual experiência feita pela diretoria do MAC USP, em parceria com a Getty Foundation, está compromissada com a educação, que é parte da sua ontologia, e nos dá margem para considerar um neologismo que define a experiência como sendo uma “Educadoria”, espécie de intersecção entre pensamento curatorial crítico e prática pedagógica decolonizante, que resulte na possibilidade de oferecer, prospectivamente, novos sentidos a conteúdos contidos em obras, artefatos e documentos.
A necessária descolonização dos currículos passa pelo seu enegrecimento, pela valorização de figuras como Manoel Querino, sem que, no entanto, se despreze aquilo que no trabalho de, por exemplo, Gonzaga Duque, possa servir para reforçar o necessário debate sobre a diversidade racial e de gênero na história do Brasil em geral e na da arte em particular. Reconhecer que essa história é deficitária é, ao mesmo tempo, reconhecer que existe sim, uma ideia qualquer de “bem fazer” artístico que atende ao gosto de uma determinada classe, de um determinado grupo, de um determinado gênero. E que, apesar disso, mesmo no bojo de instituições culturais tuteladas durante períodos de exceção política e escassez democrática, algumas visões alternativas de formação, circulação (extroversão) e gestão de acervos vicejaram subversivamente, contrariando o ambiente adverso. Mesmo nos tempos em que, entre nós, a censura imposta pela ditadura cívico-militar atuava, criaram-se contextos que desafiaram esse controle.
Nesse sentido os núcleos de educação das instituições museuológicas tiveram, e continuam tendo, papel preponderante. Em alguns casos, esses núcleos se constituem quase como “zonas autônomas” para o exercício de liberdade criativa, de interação com o público e produção de conhecimento.
Se as obras nas coleções salvaguardadas em nossos museus, e no MAC USP em particular, não traduzem a pluralidade de gênero, raça e classe presentes em nossa sociedade — pelo contrário, reafirmam a prevalecência de uns sobre outros numa sociedade dividida por classes —, o mesmo não se pode dizer de algumas políticas e práticas pedagógicas implementadas no decorrer da história dessas instituições e da própria universidade de que o MAC USP é, afinal, um importante equipamento.
Hoje as obras contidas nessas instituições constroem narrativas que podem e são subvertidas pela experiência dos mesmos atores sociais que nessas obras são periféricos ao contexto central. A produção artística desses atores vai exigindo espaços para circular, paralelamente ao avanço da luta social/política pela parcela da sociedade interessada na própria emancipação. Da relação dialética promovida na fricção entre as narrações hegemônicas e contra-hegemônicas pode decorrer uma superação, ou síntese, que torne obsoletas as proposições avessas à pluralidade de gênero, raça e classe. Vão se estabelecendo paulatinamente novos vocabulários, novas semânticas que, claro, desafiam as ideias vigentes em torno do ensino de arte e de história, das tipologias dos museus e de seus congêneres.
Perfil de Zulmira e a pele preta
A farta literatura sobre o trabalho do pintor, gravador e escultor lituano Lasar Segall é indicativa da importância que sua obra adquiriu durante sua vida e postumamente. Nessa produção literária são abordados diversos aspectos da sua vida e obra, não sendo rara a ênfase na dimensão social que ela frequentemente apresenta. Nascido na cidade de Vilna, na Lituânia, em 1891, Lasar Segall foi profundamente marcado pela sua condição de judeu. Parte importante do seu trabalho desenvolve essa circunstância, denunciando as perseguições a que seu povo esteve submetido, e que tiveram, como pior consequência, o genocídio promovido contra eles pelos nazistas durante a II Guerra mundial.
Fração relevante da sua profícua produção apresenta, em pinturas, desenhos e gravuras, homens e mulheres negras que o artista conheceu no Brasil. Como vimos, os negros e negras foram tematizados em obras realizadas por não-negros que geralmente os apresentavam como mero sujeitos do interesse do artista, que buscava na paisagem um elemento exótico, pitoresco; sua humanidade, nesses casos, fica submergida, e deles se realça sua subalternidade. Segall, pelo contrário, representa-os a partir de experiências que o tornaram permeável ao sofrimento alheio, notadamente daqueles grupos sociais que, como o seu, foram vítimas perseguidas e prejudicadas pelo preconceito e racismo. Essa adesão é tal que o artista chegará a realizar autorretratos em que se apresenta como um homem negro.
Quem, como nós, participa da terrível experiência que, no Brasil, o racismo proporciona a negras, negros e indígenas, não pode deixar de ser impactado pela pintura Navio de emigrantes, executada entre 1939 e 1941. Há muito de “navio negreiro” nessa pintura monumental, não obstante a “carga humana” que nela está representada não seja de seres humanos sequestrados na África e convertidos em escravizados nas Américas. A pintura traduz, nos seus tons de sépia, a melancolia, o cansaço e a esperança dos humildes que — involuntariamente, e diante de toda incerteza — são forçados a abandonar a terra natal na busca de dias melhores num ambiente menos hostil. Para além das qualidades técnicas e do apuro na execução do seu trabalho, essas características, de cunho conceitual, já chamavam a atenção para aquilo que Mário de Andrade designava como “arte interessada”, comprometida com pautas humanitárias.
Não por acaso, a obra de Segall foi perseguida e considerada “degenerada” pelos cultores da ordem nazista instaurada na Alemanha a partir da ascensão de Adolf Hitler e seu grupo. Uma marca indelével do regime foi, justamente, a perseguição sistemática dos artistas e intelectuais não alinhados com a nova ordem fascista, o que em 1937 rendeu, por exemplo, a exposição “Arte degenerada”, realizada em Munique, de grande repercussão. A exposição pretendia apresentar o trabalho dos modernistas como resultado de sensibilidades deturpadas e doentias, e reuniu em torno de 650 obras de artistas que representavam a vanguarda da arte moderna na Europa, como Marc Chagall, Paul Klee, Wassily Kandinsky, Otto Dix, Piet Mondrian, Käthe Kollwitz e Lasar Segall.
Em 2018, o MAC USP e o Museu Lasar Segall organizaram a importante exposição A “Arte Degenerada” de Lasar Segall – A perseguição à arte moderna em tempos de guerra, com curadoria de Helouise Costa, do MAC USP, e Daniel Rincon Caires, do Museu Lasar Segall. A mostra foi acompanhada de um seminário internacional que considerou a repercussão da exposição Arte Degenerada no Brasil e na luta antifascista que ela também detonou.
Quem sabe se a resiliência e o humanitarismo desse artista, judeu emigrado, não coincide com a humanidade daquelas pessoas que ele retratou? Pessoas que um cotidiano de provações não conseguiu apequenar.
Assim, a pintura intitulada Perfil de Zulmira, realizada em 1928, que pertence ao acervo do MAC USP, ganha novo interesse; interesse aliás já pioneiramente explorado pelo núcleo educativo daquele museu, através de propostas de mediação elaboradas pela sua coordenadora de núcleo, Maria Angela Francoio. O que confirma o — digamos — vanguardismo dos educativos dos museus, e desse em particular.
Essa capacidade de revelar a dignidade da pessoa através de artifício poético é recorrente no artista. A própria dimensão da pintura participa dessa estratégia, já que sua pequena dimensão (62,5 x 54 cm) e o cuidadoso tratamento dispensado na execução do trabalho convidam-nos a observar de perto o retrato da menina negra que, vestida de rosa, posa contra um fundo de cores claras e brilhantes, no qual se encontra um pano branco decorado com rosas pálidas que, como uma aura, destaca a silhueta sem ângulos da menina. Menina que, sendo um indivíduo e tendo identidade, sabemos se chamar Zulmira e não simplesmente “a negra”.
A pele preta que instigava Segall exigia que ele elaborasse uma paleta, isto é, uma série de cores que, misturadas, resultariam na tonalidade desejada. Essa paleta, por conta da sua formação europeia, talvez lhe fosse desconhecida, mas os resultados que obtém ao pintar personagens negros só reforçam a ideia de que ele se dedicava ao tema com afinco idêntico àquele que dedicava a outras obras que realizava. Essa pele negra parece ter absorvido o interesse de outra artista estrangeira que entre nós realizou importante obra, a fotógrafa inglesa Maureen Bisilliat na sua série Pele Preta, da qual o MAC USP tem pelo menos um exemplar. A fotógrafa dá vazão a um afeto de vocação política: a série de fotos foi realizada em 1968, annus mirabillis das lutas por direitos civis pelo mundo afora. O compromisso de Bisilliat é tal que sua obra acabou por se constituir em uma das mais significativas do núcleo de fotografia, história e memória do Museu Afro Brasil de São Paulo, onde, aliás, esse pesquisador teve contato com a obra.
A série de “madonas negras” que Lasar Segall realiza e que tem na pintura Morro Vermelho, de 1926, um dos seus possíveis pontos culminantes, é também central à sua obra. A pintura, de uma imponência “arcaico-mítica”, repete na apresentação dos personagens uma composição que, fiel ao tema, obedece à tradição clássica. A figura da mãe que acolhe no colo a criança nos observa com serena gravidade; mãe e filha formam um triângulo centralizado na tela; contra essa “pirâmide” de cores violáceas, vermelhas, douradas e terrosas está uma favela, ladeada por imponentes palmeiras que mais parecem colunas que sustentam o céu; é o Morro Vermelho, e é interessante observar como essas formas do Morro Vermelho remetem à proa do Navio de emigrantesEmigrantes é o mesmo grande triângulo de tons ocres. Um dado significativo da pintura é que os pés da mãe retratada estão calçados com uma espécie de sapatilha dourada. Ora, nas representações de negros e negras os seus pés estão quase sempre descalços, porque isso era característica do escravizado, sendo vedado a eles o uso de calçados. Uma das primeiras providências a serem tomadas quando alcançavam a liberdade era, justamente, buscar calçados. Nas representações do negro pelos modernistas brasileiros, esses pés continuam quase sempre descalços.
Aliás, essa maternidade militante não seria um dos temas recorrentes na poderosa obra da artista expressionista alemã Käthe Kollwitz (1867–1945), também presente ao acervo do MAC USP? Na obra de Kollwitz, a mãe disputa com a “morte” a vida dos filhos. Morte que, na mitologia engendrada pela artista alemã, é metáfora para as guerras e para os que as promovem.
O MAC USP salvaguarda uma importante coleção de obras em papel de Emiliano Di Cavalcanti (1897–1976). Dentre elas, chamou a atenção deste pesquisador um poderoso desenho realizado com grafite e bastante fragilizado pela ação do tempo, sem título, realizado em 1935. É um trabalho que, apesar das suas reduzidas dimensões, resulta grandioso, sugerindo monumentalidade. Aqui, temos novamente uma madona negra apresentada em composição que obedece a uma forma triangular; a criança dorme no colo da mãe e — detalhe importante — está bem-vestida e calçada. A mãe, por sua vez, traz o semblante preocupado; a boca entreaberta e os olhos cansados denotam apreensão. Cavalcanti, como sabemos, foi, num determinado momento da sua trajetória, um artista politicamente engajado. A data desse trabalho coincide com a ascensão do nazifascismo na Europa, momento de grande tensão que antecedeu a eclosão da II Guerra Mundial.
Se Segall e Cavalcanti escolhem representar madonas negras em suas pinturas, Alberto da Veiga Guignard (1896–1962) faz opção pela “sagrada família”. Na pintura Festa em família, ele apresenta o retrato de uma família negra e, à sua maneira, próspera. O artista se aproxima de uma estética de sabor naïf, que nos faz considerar que a produção, dita popular ou ingênua merece ser mais bem avaliada. Certa ideia em torno da assim chamada “arte popular” tem o condão de interditar a sua entrada no universo do que entendemos por arte contemporânea. São poucos os artistas desse partido no acervo dos museus dedicados à arte contemporânea, mas a obra refinada de Guignard tem sugerido outras possibilidades de leituras e aproximações com o universo da arte que chamamos popular.
À exceção de Cavalcanti, nenhum dos artistas prospectados nessa imersão é negro. Suas obras, no entanto, referem-se a negras e negros, e todos, ao elaborar as suas narrativas, adotam a linguagem figurativa. O artista cearense Antônio Bandeira, cujo centenário de nascimento é celebrado neste ano de 2022, é negro e pelo contrário, no desenvolvimento do seu projeto artístico, assume uma linguagem não figurativa, o que está confirmado na sua imponente Flora noturna, realizada em óleo sobre tela em 1959. Bandeira faleceu muito precocemente, em 1967, na Paris agitada por existencialistas, anarquistas, comunistas e sobretudo estudantes que, um ano depois, em 1968, promoveriam uma revolta que quase derrubou a Quinta República. Bandeira contraria a narrativa que espera do artista negro uma obra exasperante de exotismo e sensualidade: como os baianos Rommulo Vieira da Conceição e Rubem Valentim, sua obra é cerebral, sem implicar-se em conceitualismo de caráter niilista. Ela apenas confirma que a sensibilidade de artistas negros e negras transita com desenvoltura por qualquer território da arte.
Concluo que a experiência que foi proporcionada para prospectar no acervo do MAC USP os índices da civilização afro-diaspórica tem um simbolismo que extrapola o próprio evento, e que essa experiência é significativa das mentalidades comprometidas com a reparação de injustiças históricas. Acreditamos que as experiências de Diane Lima e Igor Simões vão ampliar em muito o alcance dessa pesquisa, e que o pioneirismo da iniciativa marca um ponto extraordinário na invulgar história dessa fundamental instituição.
Referência
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Ed. Unicamp, 1990.