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Painel Curatorial

Tempo Negro: abstração e racialidade na arte contemporânea brasileira

Nos últimos anos, os motivos pelos quais vimos crescer exponencialmente a presença da abstração como uma estratégia de recusa na prática de artistas racializados e dissidentes têm contornado a minha pesquisa e prática curatorial, sobretudo no que tange a alguns projetos mais recentes.

Como quem escreve do futuro, hoje vejo que o modo como esse nosso encontro tem se dado tem a ver tanto com o exercício de acompanhamento que tenho feito com um grupo de artistas, como com a incontornável transformação que esses mesmos artistas vêm promovendo no campo da arte contemporânea, nos últimos cinco anos. Também, com uma escuta atenta sobre os efeitos generativos que sustentam o encontro entre teoria e prática, e que, na concepção do pensamento feminista de bell hooks, aproxima-se da própria definição sobre o papel da intelectual negra: aquela que une pensamento à prática para entender a sua realidade concreta (HOOKS, 1995).

Tal reviravolta epistemológica em curso no Brasil parece estar intimamente conectada com o modo como as nossas movimentações têm impactado o sistema de produção de conhecimento no campo da cultura e da arte e os modos como tais práticas e políticas afirmativas vêm encontrando maneiras de (re)organizar esses saberes nos mais diferentes espaços (formais e não-formais) de educação. São exemplos de acontecimentos históricos importantes: a aprovação das leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que tornaram obrigatórios os estudos em história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todas as instituições de ensino do país; a implantação do sistema de cotas nas universidades; as diversas mobilizações, tanto em combate à intolerância religiosa quanto para a proteção legal dos terreiros na salvaguarda da cultura de matriz afro-indígena; além de, mais recentemente, um boom editorial que se, com certeza, é efeito dessas e muitas outras mobilizações, também carrega a hipervisibilidade digital como base propulsora.

Sendo partícipes de uma geração que dialoga, fermenta, dissemina, viu e segue vendo não somente autoras e autores negros se tornarem (hiper)visíveis, mas toda uma comunidade de saber organizar-se historicamente no combate ao epistemicídio, ao criar estratégias próprias que servem como ferramentas para lidar com o cotidiano, essas práticas artísticas, além de ampliar os limites sobre as políticas de representação, vêm não somente inscrevendo historicamente as lutas raciais e suas teorias no campo da linguagem e da estética, como vêm, sobretudo, sendo expressivamente influenciadas e expandidas por elas.

É, portanto, a partir desse ambiente efervescente para a produção de conhecimento que se confirma a importância deste preâmbulo: de saída, recusar quaisquer leituras superficiais que possam reduzir o uso da abstração na poética negra, como sendo essencialmente fruto das mesmas motivações que deram origem ao abstracionismo na história da arte ocidental.

Como veremos, ao fazer abstração — ou seja, ao isolar ou excluir, não figurativizando, tudo aquilo que à luz da ultravisibilidade pode ser tomado como excesso —, esses artistas apresentam um arcabouço de referências alargado, apoiando-se na materialidade, na ancestralidade, em seus territórios e no arsenal estético e teórico das diásporas; elementos que, em última instância, levam-nos ao questionamento central que dá consistência ao propósito deste texto: questionar como um museu de arte contemporânea universitário como o MAC USP pode ser um espaço possível de recepção, salvaguarda, produção de conhecimento e exibição de uma arte contemporânea produzida por pessoas historicamente racializadas e dissidentes, a partir de um confronto com o seu próprio acervo.

II

Não estranhe a leitora o tom de ação e aproximação, a voz descritiva e virtual que sustentam as páginas que se seguem. Eles se justificam pelo fato de que este texto é fruto da minha apresentação ao longo do seminário ocorrido em outubro de 2021, no âmbito deste Programa. O que vou apresentar neste texto, então, são alguns questionamentos que surgem a partir desse contato e que se conformam na hipótese sobre como o concretismo e o neoconcretismo no Brasil criam uma equação de valor que tem como consequência a obliteração (ou uma tentativa de obliteração) da racialidade na cena ética e estética moderna no país.

Se a princípio proponho uma leitura de algumas obras emblemáticas do acervo, a partir do que o pensamento radical negro e a poética feminista negra de Denise Ferreira da Silva têm nos possibilitado revelar, esse gesto serve apenas para fundamentar aquilo sobre o que mais nos interessa especular: como um conjunto de práticas contemporâneas responde, não exatamente a elas, mas ao que essas obras vêm produzindo como efeito, em nosso presente? Na prática, essa operação se configura através do modo como o feminismo de recusa e todo um conjunto de saberes ancestrais têm nutrido a intelectualidade artística negra, disponibilizando ferramentas capazes de fomentar rotas de fuga a essa mesma historicidade. As consequências para estas poéticas, como veremos, materializam-se numa recusa em deflagrar, citar ou (re)criar uma relação de interdependência que as paralise num movimento essencialmente contra a história, abrindo espaço para uma performance do aqui-agora.

Por outro lado, sabemos que é impossível evitar a ontológica reprodutibilidade sustentada através das visualidades que definem a linearidade dessa história, e que, mesmo na recusa, seria impossível fugir do efeito totalitário que há no abstracionismo, ainda que dele nenhum desses artistas sejam declarados descendentes. Nesse caso, seria no mínimo falível tentar circunscrever, em argumentos rígidos, o impacto em nosso imaginário e formação cognitiva da enciclopédia iconográfica da arte ocidental, bem como das múltiplas referências que povoam os nossos imaginários, sobretudo considerando os que com ela foram academicamente disciplinados.

Assim sendo, se não é o nosso objetivo medir essa dimensão, também não pretendemos ser passivas quanto a leituras universalistas e comparativas que desde sempre tomam os eleitos grandes ícones como régua do mundo.

O que nos parece então ser o motivo central pelo qual artistas contemporâneas racializadas caminham na direção de uma expressão abstrata (e, portanto, da fuga à norma tema-figura) é a compreensão de que a figuratividade, suas ferramentas críticas e procedimentos poéticos não têm sido capazes de desmantelar o mundo que a representação de suas denúncias contra-atacam. Dito de outro modo, que a dimensão utilitária da linguagem, no uso da exposição da violência como uma ferramenta de protesto, não ​​tem sido capaz de performar a descolonização ou o fim do mundo tal qual o conhecemos e no qual a violência racial faz sentido. Nesse caso, a tomada da abstração como uma estratégia de expressão tem muito mais a ver com a crise das políticas de representação do nosso contemporâneo e de um exercício de liberação cognitiva do que com um retorno a uma tendência histórica. A fuga é, então, conforme Denise Ferreira da Silva repetidamente destaca, “refigurada em um fazer crítico e criativo sempre em referência a um modo de existir como condição do mundo, e não como a condição de estar no mundo, desse modo produzindo aquilo que é ao mesmo tempo uma façanha, uma ação, um fardo e um artefato” (FERREIRA DA SILVA, 2019).

E é essa condição do mundo que sustenta a produção de valor do concretismo e do neoconcretismo, fazendo, ao fim, dos artistas concretos e neoconcretos numa esfera da arte global, a imagem que se conhece como sinônimo de arte no Brasil e, portanto, o referencial estético que aprisiona o futuro que agora pretendemos escavar.

III

Retomo então o que Ferreira da Silva chama de um esforço na direção de um exercício de destruição, na tentativa de utilizar a black light, uma ferramenta analítica pela qual seria possível fazer “reluzir o que deveria permanecer ofuscado para manter intacta a fantasia da liberdade e da igualdade” (FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 125). Ainda segundo a filósofa, como a luz negra é focalizada naquilo que não aparece na teoria, ela quebra a teoria e expõe a violência total. E é essa violência total que tem a capacidade de quebrar o código e suas consequentes equações de valor.

Nesse sentido, detectar e quebrar o código da produção de valor do abstracionismo moderno se trata de um trabalho longo, do qual hoje apresento os primeiros passos, já que o que me chamou atenção no acervo — e há muito vem matizando os meus projetos curatoriais — é a forma como a abstração se coloca como um cânone decisivo para a produção da arte moderna brasileira no século XX; e como no século XXI, procedimentos composicionais de artistas historicamente racializados e dissidentes, praticantes da abstração, tem sido performados a partir de materialidades, linguagens e técnicas que carregam as suas próprias especificidades.

Sendo assim, são duas as obras em que irei me deter. Nesta seção, focarei na Unidade Tripartida, de Max Bill, obra de 1948-1949, e Triângulos Opostos pelo Vértice, Retângulo, Quadrados, Barras, de 1931, de Sophie Taeuber-Arp, que juntas com outros nomes formam o conjunto de obras que visitei e que são peças basilares na coleção do Museu.

Para começar nossas análises, apresento esta imagem que muito me impressiona por sua violenta sutileza. Trata-se da fotografia de título Montagem e limpeza da sala com obras de Sophie Taeuber-Arp (Fig. 1), de autoria do alemão Peter Scheier, na qual — como enuncia o título — aparece a obra de Taeuber-Arp, artista que integrou a delegação suíça da I Bienal de São Paulo em 1951, assim como também o fez o suíço Max Bill.

Figura 1 Figura 1 Legenda

Peter Scheier, Homens limpando a sala de representação da Suíça. Obras de Sophie H. Taeuber-Arp. Da esquerda para a direita: Escalonamento (1934), Museu de Arte Moderna – São Paulo – SP, 1951. Peter Scheier/ Instituto Moreira Salles.

A título de contextualização, Peter Scheier foi um dos fotógrafos que se dedicou, nas décadas de 1940 e 1950, ao registro de espaços de arte. Como “um detentor de referenciais estéticos modernistas” (COSTA, 2015, p. 100), o nosso objetivo na leitura dessa fotografia é olhá-la como um documento capaz de nos trazer informações sobre os espaços de arte da época, mas também de entender como essas representações, do ponto de vista racial, acabavam por carregar as marcas das negociações das imagens encomendadas daquela mesma época.

É importante para nós a questão sobre a veiculação midiática dessas imagens, pois, conforme muitas das trocas que tive ao longo do seminário com as pesquisadoras-professoras Ana Magalhães, Helouise Costa e Alecsandra Matias, essas imagens acabam por destacar o quanto o concretismo foi de fato um projeto político, e como este foi encenado largamente na imprensa de modo a posicionar São Paulo como uma capital moderna. Inclusive os textos Apresentação. Arte abstrata no Brasil: novas perspectivas, de Ana Magalhães e Adele Nelson, e Espaços da arte: fotografia e representação em Peter Scheier, de Helouise Costa, são ricos ao apresentar como a consolidação dos conglomerados de comunicação se estrutura no mesmo momento da criação dos primeiros museus, galerias e acervos, a exemplo da criação do próprio MASP, bem como da criação da Bienal de São Paulo. Scheier foi funcionário do MASP e do Jornal O Cruzeiro – empreendimentos liderados por Assis Chateaubriand, um dos magnatas da comunicação do Brasil do século XX.

Como não é o nosso objetivo dissecar de modo tão detalhado tais informações, mas saber o que acontece quando racializamos essa fotografia, resta-nos dividir a seguinte questão: o que significa, na imagem de Scheier, a presença dos trabalhadores negros limpando coreograficamente o chão de onde emergem as paredes com as obras de Sophie Taeuber-Arp?

Se segundo Heloisa Espada (2021), o fotógrafo, de forma recorrente e estilística, fazia uso das polaridades para causar surpresa, humor, ou para mobilizar a curiosidade popular, a presença dos trabalhadores negros, montadores e profissionais de limpeza da exposição (tal como — não esqueçamos aponta o seu título) cria uma oposição sensacionalista, por meio da qual o bizarro, o grotesco, o inusitado, o pitoresco, expressos no corpo racializado negro que assume o seu lugar como mão de obra de um projeto moderno, enquanto as obras de Sophie Taeuber-Arp, como a já citada e visitada Triângulos Opostos pelo Vértice, Retângulo, Quadrados, Barras, de 1931, reinam no espaço, absolutas.

O que essa imagem então nos ajuda a evidenciar é aquilo que, de modo contundente, a obra em si exclui: como ela mesma articula e abstrai, através do seu racionalismo e universalismo, as estruturas raciais da sua pureza formalista estética.

É o que avistamos na descrição da obra de Taeuber-Arp (Fig. 2), mulher de grande destaque da delegação suíça, segundo Heloísa Espada:

Taeuber-Arp trabalhava com formas de aparência anônima traçadas com instrumentos de precisão (régua e compasso, por exemplo) e suas telas eram construídas com poucos elementos repetidos em dimensões variadas. A clareza, a nitidez, a precisão, a uniformidade da superfície e a ideia de anonimato justificam seu alinhamento à arte concreta. No entanto, o equilíbrio do quadro é resolvido caso a caso, não a partir de uma regra pré-fixada, mas das relações estabelecidas entre os elementos, os cheios e os vazios, as proporções, a vibração das cores e o ritmo criado pelas repetições, como se observa em Triângulos Opostos pelo Vértice, Retângulo, Quadrados, Barras. O equilíbrio construído a partir de diferenças, por vezes conciliando ideias antagônicas de ordem e desordem, movimento e imobilidade, simetria e assimetria, brilho e opacidade, é um tema central em seu trabalho (ESPADA, 2021, p. 192).

Figura 2 Figura 2 Legenda

Sophie Tauber-Arp, Triângulos Opostos pelo Vértice, Retângulo, Quadrados, Barras, 1931. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP)

Ao olharmos para essa descrição e convidarmos ao diálogo David Lloyd, que em seu livro Under Representation (2019) demonstra que, como a disciplina da teoria estética forneceu os termos indispensáveis que regulam a produção e reprodução da ideia de sujeito humano da modernidade, universal e livre, a abstração moderna no Brasil funciona como um regulador do pensamento desenvolvimentista, criando uma clara divisão entre aquele dotado de Razão e o “Outro irracional”, que ainda, segundo o autor, será relegado aos estudos de disciplinas como a antropologia.

Sobre essa atribuição redutiva de um propósito formal ao objeto na equação de valor dessas obras, é válida a afirmação de Lloyd, que diz que

[…] ninguém pode ultrapassar esse limiar sem uma cisão que separe o ser humano corpóreo do sujeito formal, do juízo estético que se identifica com o sujeito universal da humanidade. Figuras raciais assombram esse limiar, marcando a fronteira entre os assuntos de civilidade e o espaço subdesenvolvido de selvageria e escuridão(LLOYD, 2019, p. 7).

Nesta outra fotografia de Scheier de 1951, os artistas Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro, Kazmer Féjer e Tomás Maldonado posam ao lado da escultura Unidade Tripartida de Max Bill, na I Bienal de São Paulo (Fig. 3). A justaposição de fotografias é capaz, no mínimo, de revelar como as posições se definem entre roupas rotas, sujas e rasgadas de olhar subserviente e dócil, em alto contraste com os ternos alinhados e o olhar impositivo, que encara, na altura do olho e de braços abertos, o objeto de valor ao qual a Forma, a Função e a Beleza de Bill passou a ser reverenciada. Segundo Ana Magalhães e Adele Nelson (2021, p. 97):

Os protagonistas do estabelecimento de um conjunto de instituições de arte moderna no pós-guerra e da emergência da abstração, formada de patronos da arte, artistas e escritores, eram, com poucas exceções, os privilegiados — letrados e majoritariamente brancos, ainda que de classes sociais diferentes, bem como de identidades étnico-regionais diversas — e não estavam sujeitos à privação ou à violência do Estado. Eles eram, ao contrário, os cidadãos favorecidos e os agentes da imagem do indivíduo e da sociedade do segundo pós-guerra, enquanto o Brasil experimentava uma expansão da classe média urbana.

Figura 3 Figura 3 Legenda

Peter Scheier, Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro, Kazmer Féjer e Tomás Maldonado posam ao lado da escultura Unidade Tripartida de Max Bill, na I Bienal de São Paulo, 1951. Peter Scheier/ Instituto Moreira Salles.

Recorremos à matemática para entender os princípios e operações de Bill que, mesmo rejeitando o recurso das fórmulas na produção artística, defendia “o uso de princípios racionais na formulação de temas que poderiam concretizar abstrações e proposições artísticas” (MARAR, 2004, p. 2).

Ainda que, para Bill, a arte concreta fosse a expressão pura da harmonia da medida e regra, ele “acreditava na arte como um veículo para transmissão direta de ideias, sem o perigo de o significado ser distorcido por qualquer interpretação falaciosa. Desta forma, o espaço da arte torna-se mais universal, isto é uma expressão direta e sem ambivalência” (MARAR, 2004, p. 2). Bill (1954) dizia: “Estou convencido de que é possível desenvolver uma nova forma de arte na qual o trabalho do artista poderia basear seu conteúdo num grau bastante substancial na linha de abordagem matemática”.

Encontro uma relação entre essa matemática axiomática e tautológica de Bill (Fig. 4), fundamentada nas noções da Gestalt, nas teorias relativísticas da matéria, na matemática enedimensional, no problema da fita de Moebius — e, portanto, nas demonstrações geométricas como base para a determinação e a certeza —, nas explicações de Ferreira da Silva, sobre o uso da disciplina e suas operações. Pois é na montagem e na remontagem dessa equação de valor que a sua ferramenta analítica, a black light, é capaz de quebrar os códigos (tais como este que aparece na topologia geométrica da Unidade Tripartida, de Max Bill).

Acredito que a perversidade, a dupla violência, o excesso da violência racial resulta de que esta também tem um caráter ético, o qual é dado pelo princípio da necessidade (o qual se opõe ao princípio da vida e ao princípio da liberdade). O princípio da necessidade justifica e explica tanto as operações matemáticas quanto as operações militares. Um princípio que é perverso, pois sempre se auto justifica e torna a mobilização dessas forças violentas possíveis, aceitáveis e necessárias. Logo, a black light vai atrás desse princípio e mostra que é esse princípio que torna impossível a demanda pela restauração, pela reparação. Este princípio também é o que torna impossível ver como tudo foi constituído pelo capital industrial, e que isso só foi possível por causa do trabalho escravo, 300 anos de trabalho escravo”.

Assim que, tomando tais imagens (Fig. 4 e 5) para um exercício de especulação historiográfica, se encaramos os trabalhadores negros, da primeira fotografia apresentada como significantes da dívida impagável — advinda da exploração total do trabalho escravo e posterior marginalização, precarização ou impossibilidade de adentrar ao mercado de trabalho —, como os valores impregnados nessas obras como símbolo de uma São Paulo moderna, militarizada e desenvolvimentista excluem, em termos formais e práticos, esta mesma negritude? Ao fazer abstração, o que há de concretamente político nessas obras (não a partir do que ela não figurativiza, mas da distância que cria entre a sua ética e o objeto ao qual se autorrepresenta)?

Figura 4 Figura 4 Legenda

Max Bill, Unidade Tripartida, 1948-1949. ©Bill, Max/AUTVIS, Brasil, 2022.

Sobre a atenção do mercado internacional ao concreto, a formação da sua força generativa e suas vocações político-econômicas que influenciaram, ainda que com suas disputas, toda uma geração de artistas, Magalhães e Nelson (2021, p. 97) nos deixam uma pista. Segundo as autoras:[…] de fato, a promoção da arte neoconcreta e concreta brasileiras em sentido mais amplo pode ser vista já no final da década de 1950, quando organismos diplomáticos brasileiros apoiaram uma série de exposições que promoveram esses artistas no contexto internacional, lado a lado com a apresentação do projeto de Brasília, como a nova capital do país.Aqui poderíamos abrir um longo capítulo para apresentar como as ideias de progresso foram racializadas com a presença da autoprodução da figura do europeu, em que o “eu” transparente se torna produto e instrumento da razão universal para fazer frente a um Brasil condenado à miscigenação tropical que sustentava o mito da democracia racial. A extensa descrição que fizemos sobre o formalismo geométrico serve a essa condição:

A miscigenação inscreve com segurança um movimento histórico duplo, a saber, a trajetória teleológica — o movimento em direção à transparência — do sujeito branco/europeu de uma “civilização moderna” patriarcal, a trajetória escatológica de seus “outros”; mas, mais importante, também institui um sujeito social precário, o mestiço — o brasileiro mais ou menos negro ou branco —, cujo destino é realizar um desejo de auto-apagamento (FERREIRA DA SILVA, 2006, p. 74).

Como agentes de uma política de embranquecimento, esses artistas estrangeiros, juntosa um grupo de artistas brasileiros massivamente brancos que reencenavam as vanguardas europeias, tornaram-se as instituições estéticas a serem perseguidas, obliterando com as suas formas e cálculos precisos no Brasil do pós-guerra, qualquer abordagem artística que não estivesse voltada para os princípios geométricos ou não fosse fruto de um desdobramento visual que partisse de suas linhagens. Motivo pelo qual se justifica a formação de um cânone altamente reprodutível em toda a segunda metade do século XX, e a consequente hipervisibilidade como fenômeno de propaganda, fazendo a abstração ocupar um espaço de destaque nas narrativas euro-americanas da arte latino-americana.

A artista e pesquisadora Rosana Paulino, uma das organizadoras deste seminário, elaborou, em 2018, essa crítica ao concretismo brasileiro nas séries Geometria à brasileira (2018) e Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical (20182020). Fazendo uma citação direta à violência geométrica do pós-guerra, ao cobrir os olhos das pessoas pretas e indígenas representadas nas obras, Paulino expõe como esses princípios de causalidade e eficiência servem a tais procedimentos de obliteração da racialidade como um componente jurídico, econômico e simbólico da modernidade. Juntamente com Renata Felinto, em texto publicado na Revista Zum, de título “Violenta Geometria”, as autoras comentam:

A geometria é justamente o elemento compositivo que impossibilita que as pessoas enxerguem — e recebam de volta nosso olhar, reconhecendo-as como sujeitos. A geometria as exclui e as força a ver o mundo, a si, aos seus e às suas por uma perspectiva histórica unilateral, a partir de um modo único de ser, estar e existir (PAULINO; FELINTO, 2021).

Por fim, mais do que um levante histórico detalhado dessas duas obras (algo que seria impossível em nosso curto espaço de tempo), o que me concentrei em fazer foi levantar algumas questões que seguirão sendo desenvolvidas sobre o que essas e outras obras emblemáticas da história da abstração e seus híbridos excluem, e o que (em termos de uma obliteração/subjugação racial e uma política de embranquecimento) a própria fotografia do Scheir, diferentemente da obra em sua síntese, escancara.

O gesto coreografado da imagem nos chama a atenção. Tal movimento me faz efabular o tipo de memória que essa mesma coreografia encenada na fotografia, essa espécie de dança com sorrisos avergonhados e de costas para a História, tem performado no presente. Através da imposição da máquina fotográfica como um equipamento que captura, dispara e intimida, o que o fato de estar nessa posição olhando “docilmente” para o chão enquanto se limpa gerou como mobilização política nos dias de hoje, na direção dessa mesma história da arte? E o que estar de costas para um momento fundante da história da arte moderna do Brasil nos trouxe como força revolucionária, que toma a profundidade negra como negatividade (recusa) e fugitividade (rebelião)?

Imaginemos que são essas as cenas e movimentos que veremos a seguir e que a fotografia tanto não previa, quanto não contava.

O nascimento da forma: oceânicas, porosas e monstruosas

Como comentado no início da apresentação, minha escolha das obras, ao me aproximar do acervo do MAC USP, se justifica pelo meu interesse em dar continuidade a uma pesquisa que traz a seguinte questão: como, especialmente no século XXI, procedimentos composicionais de artistas historicamente racializados e dissidentes que flertam com o abstrato têm sido performados através de diferentes materialidades, linguagens e técnicas?

Como introduzimos, o uso do recurso da abstração por esses artistas se justifica por múltiplos motivos: pela necessidade crítica de criação de estratégias de fuga, tendo em vista a ultravisibilidade e fetichização da norma tema-figura para corpos negros no sistema da arte; pelos consequentes processos de captura de tais representações por um aparato tecno-normativo neoliberal, gerando certo esvaziamento dos discursos políticos; e por uma necessidade de expressão na direção de uma liberação cognitiva que, como tal, tem como um dos princípios também produzir um espaço fora da normativa enciclopédica, tanto de uma historiografia euro-americana da arte quanto de um imaginário simbólico, violento e estereotipado que, como efeito, acabou por gerar um enclausuramento sobre o que é ou deve ser uma arte produzida por pessoas negras. Complexificando o espaço representacional negro e a “presunção que artistas negros e seus trabalhos são transparentes para a identidade social” (ENGLISH, 2007, p. 13), esses artistas acabam por recusar ainda a condição abstrata que se tornou a própria “arte negra”, tendo em vista a cartilha do sucesso que vem regendo as instituições artísticas.

Além das já fundamentais contribuições citadas e promovidas pela circulação do pensamento de Denise Ferreira da Silva no Brasil, nesse sentido é indispensável mencionar ainda a poética plástica e textual da artista e pensadora Jota Mombaça. Reclamando o direito à opacidade, é importante salientar que foi através do efeito generativo causado pelo seu incêndio que se forjou um vocabulário, um procedimento de negociação e um corpo discursivo capazes de ampliar reflexões importantes em torno da produção de valor das perspectivas anticoloniais no sistema da arte e os efeitos da sua commodificação. Segundo ela, no texto A Plantação Cognitiva:

[] uma vez que a commodificação dessas perspectivas — nossas perspectivas — depende diretamente de uma certa continuidade entre a nossa produção artística e a nossa posição sócio-histórica talvez faça sentido afirmar que a venda de nossos sons, textos, ideias e imagens reencena, como tendência histórica, os regimes de aquisição dos corpos negros que fundaram a situação-problema da negritude no marco do mundo como conhecemos (MOMBAÇA, 2020, p. 6).

Pensamentos que retroalimentam e também informam as cenas, ficções especulativas, estudos acadêmicos, performances, vídeos, músicas, remixes e instalações que dão contorno à sua trajetória como uma artista que vem convocando o apocalipse e o fim do mundo tal como o conhecemos como única medida política razoável “que libere o mundo porvir das armadilhas do mundo por acabar” (MOMBAÇA, 2016, p. 16). Um trabalho que até aqui não se conforma em dominar o espaço, mas produz o rompimento dele mesmo pelo seu poder de evocação. É assim que questões que envolvem o risco, a efemeridade e a supervisibilidade do seu trabalho com a performance ganharam contornos críticos e, envergando-se na própria língua, seguem produzindo uma consciência histórica sobre o fato de que a existência negra trans, não-binária, sapatão, bixa e travesti já são suficientemente violentas para serem reiteradas como objeto de valor fetichista, tal como formalmente compreendido na história da arte (LIMA, 2020, p. 55).

Diante de tais práticas e suas plasticidades, foram esses os pensamentos que guiaram o partido curatorial do Valongo Festival Internacional da Imagem de 2018, que tinha como título Não me aguarde na retina e se adensou na edição de 2019 em O melhor da viagem é a demora. De algum modo, também da 3ª Frestas — Trienal de Artes do SESC — O rio é uma serpente, da qual, entre 2020 e 2022, fui co-curadora. Muitas das obras que apresentarei, ou das artistas que venho acompanhando, datam de comissionamentos e programas de residência desenvolvidos ao longo desses anos.

No mesmo período, escrevi O nascimento da forma: oceânicas, porosas e monstruosas, texto que teve ressonância direta com a seguinte proposição de Ferreira da Silva, que pergunta:O que está em jogo aqui? Do que precisaremos abrir mão para liberar a radical capacidade criativa da imaginação e dela obtermos o que for necessário para a tarefa de pensar O Mundo de outra maneira? Nada menos que uma mudança radical no modo como abordamos matéria e forma (FERREIRA DA SILVA, 2016; 2007).

Esse texto se desdobrou, na sequência, em mais dois outros: um ensaio curto publicado na revista estadunidense The Brooklyn Rail, de título Oceanic, Porous, and Monstrous Thoughts, um convite que veio do editor da edição, o artista e coreógrafo Ralph Lemon; e uma segunda versão, que foi publicada sob o título O nascimento da forma: a personagem da escritora de uma história que fala”, na Revista Jacarandá. A convite de Marcelo Campos, esta foi uma edição especial desenvolvida em colaboração com o Instituto de Artes da UERJ.

A partir dessa intimidade com os processos de pesquisa e criação com esses artistas, O nascimento da forma, em suas diferentes versões, se tornou o título-testemunho que encontrei para reunir e narrar, de modo introdutório, as experiências e aprendizados com esses processos de acompanhamento curatorial — e também para abordar uma outra questão que se tornou incontornável, que é o meu desejo de escrever uma história que se dê na linguagem e pela linguagem. Faço essas observações pois nesses textos tento extrapolar o tom descritivo que conhecemos sobre os modos como se dão as narrativas históricas e que, aqui, pela própria característica de publicar aquilo que foi uma apresentação, tornou-se árido adicionar (sobretudo pelo tempo) os componentes poéticos textuais que têm me ajudado e me ajudariam na direção dessa operação. Então, seguindo na direção de alguns desses trabalhos, começo apresentando a obra de Juliana dos Santos (Fig. 6), na qual a negação da representação não surge como um procedimento para aniquilar a subjetividade; mas surge em performance para, através do que está disponível com os olhos da terra, ser perseguida.

Pois, depois de quase meio século de uma história da arte que reflexivamente privilegia o artista figurativo como o único agente capaz de fazer ou possibilitar políticas antirracistas, a artista, na pesquisa Entre o azul e o que não me deixo/deixam esquecer, nos sugere, assim como faz Darby English (2016, p. 8), que é preferível entender “a relação representação-abstração de uma forma que não a reduza a uma simples escolha entre engajamento político e recuo apático”.

Desenvolvendo pinturas monocromáticas em azul, com um pigmento extraído da Clitoria Ternatea, a artista expande as suas propriedades para o espaço através de performances e instalações, possibilitando-nos uma chance de viver a experiência sensível e plástica que é o azul. Desse modo, tensiona questões que passam pela liberdade cognitiva e a ultravisibilidade, quando consideramos o fardo representacional e os traumas existenciais que matizam a experiência de ser uma mulher negra. Seja lançando-se em processos de escuta e vivência com famílias que cultivam a Clitória, convidando-nos a beber o azul através da poderosa dimensão terapêutica do seu chá, ou coreo-gravando organicamente suas flores ao carimbar e regar suas pétalas sob o papel-algodão, a artista abre a questão sobre o esforço que ela mobiliza para fazer com que o azul aconteça independente da sua consequente efemeridade, já que é a exposição constante à luz que produz o seu possível apagamento.

Já na série de esculturas e cobre sobre tela Como colocar ar nas palavras (Fig. 7), a artista Rebeca Carapiá cria uma cosmologia em torno dos conflitos das normas da linguagem e do corpo, ao mesmo tempo em que encena estratégias de fuga, tendo em vista os processos de captura, fetichização e ultravisibilidade das políticas identitárias exploradas pelo capital racial tecno-normativo e o seu consequente esvaziamento ético, sobretudo nos últimos cinco anos, no Brasil. Lançando mão de um feminismo de recusa, Carapiá nega as categorias e marcadores coloniais e recorre à abstração, de modo a criar uma escrita que foge do destino compulsório da representação, quando o que está em jogo são os imbricamentos entre as práticas artísticas e de resistência produzidos por corpos racializados e dissidentes como o seu. Ao buscar outros modos de dizer a diferença sem explicá-la, no que se refere à performatividade da materialidade vemos que é no trabalho com o ferro e com o cobre que a artista desconstrói as geografias do feminino. Ao manejar um conhecimento incorporado ancestral e adentrar as marcas da violência racial-ambiental do espaço periférico, Carapiá nos convida a um debate geopolítico com o território da Cidade Baixa, em Salvador, lugar onde nasceu e se forjou artista.

Nas pinturas expandidas e desenhos apresentados em Buracos, crateras e abraços (dedicada a todos os amigos que não gostam de falar sempre) (Fig. 8), título da exposição individual de Ana Almeida realizada em 2021, a tensão entre corpo e espaço também reaparece “para fazer surgir uma massa feita de ar e cor na qual tudo é ritmo e intensidade” (ALMEIDA, 2021). Na busca pela renúncia ao espetáculo da representação, o corpo passa a ocupar o espaço da própria cratera, e as reivindicações se dão no espaço abstrato dos buracos, nos quais o que se faz presente é o próprio múltiplo em sua capacidade de contaminação e propagação. Tendo Lucia Laguna como umas das suas principais referências (segundo me contou o curador da exposição, Tarcísio Almeida), a artista recorre a uma série de procedimentos cotidianos para imprimir gestos e deixar rastros pelo papel, imprimir suas proporções, confrontar as ideias de tempo no uso das materialidades e produzir “deformações rítmicas que saturam as cores para que delas verta-se uma outra política para o próprio corpo” (ALMEIDA, 2021).

Figura 8 Figura 8 Legenda

Ana Almeida, Vista da exposição Buracos, crateras e abraços (parte 2), 2021. Fotografia: Ana Pigosso. Cortesia Central.

Somada a outras práticas que aqui poderíamos elencar, vemos que esses trabalhos são performados através de uma experiência de criação centrada na memória do corpo como episteme, nas materialidades e sua performance, e na interlocução com o espaço e o território onde esses artistas se forjaram como artistas. O que nos interessa, então, é a função ritual, ontológica e performativa dessas obras que se enunciam como estudos, tecnologias, ferramentas e meios.

Nesses termos, vislumbro ainda a prática de Iagor Peres (Fig. 9), artista que esteve presente em 2019 na residência PlusAfroT que ocorreu na Villa Waldberta, em Munique, na Alemanha, projeto de que fui co-curadora/idealizadora junto com o coreógrafo Mário Lopes. A partir da sua trajetória na dança e na performance, Peres invade o espaço com a pesquisa Estudos para a minha pele, mergulhando nas densidades e substâncias (orgânicas e não orgânicas) que compõem as relações no espaço. Desenvolvendo uma técnica própria que nomeia como Pelematerial, o artista navega entre o visível e o invisível, buscando “compreender o papel dessas camadas invisíveis existentes no que se entende como o vazio, nesses vãos entre nós e o mundo”. Segundo ele ainda, “essa camada espessa e amorfa que diz sobre o processo de racialização é um dos exemplos de outras densidades existentes com tipos e variações imensuráveis” (PERES, 2019).

Figura 9 Figura 9 Legenda

Iagor Peres, Registro de processo de residência na PLUSAFROT – Villa Waldberta Munique-Alemanha com curadoria de Diane Lima e Mário Lopes, 2019. Fotografia. Ana Paula Mathias

V

Diante do que vislumbramos abrir a partir desse sugestivo desfecho, uma primeira conclusão pode ser compartilhada. Como pudemos perceber, a ausência do sujeito figurativizado negro como centro das práticas de que nos aproximamos, parece não ter como intuito representar a negritude em sua versão formal-abstrata. A rebelião contra qualquer evidência histórica se dá na fuga da norma tema-figura, da citação intertextual crítica e do uso da abstração enquanto metáfora.

Mas o que significa esse processo de exclusão do figurativo para o debate de uma educação visual que ao longo do tempo denunciou e lutou pelo direito à representação, através sobretudo da dimensão utilitária da linguagem?

Acreditamos que não se trata de criar uma polarização com o histórico de denúncias através de um procedimento de figurativização que, em diferentes momentos históricos da arte afro-brasileira, se organizou. Se a perspectiva instrumental da arte como propaganda de Du Bois acabou por influenciar toda uma geração afrodiaspórica, ao pregar que “Toda arte é propaganda e sempre deve ser, apesar do lamento dos puristas”(DU BOIS, 1926, p. 324), vemos que esse grupo de artistas apenas parece dar continuidade a uma história de resistência à violência racial que, de tempos em tempos, reinventa os processos de exploração e captura, e que na institucionalização neoliberal do sistema da arte, se apresenta na forma de uma plantação cognitiva:

É certo que as formas de coerção foram atualizadas, e que migramos de um sistema de captividade total para um outro de captividade fractal, no qual a violência nos atinge diferencialmente, construindo assim umas formas de assimetria internas ao diagrama da negritude que possibilitam, em nível coletivo, a concomitância de nossa morte e de nosso sucesso (MOMBAÇA, 2020, p. 6).

Além disso, uma outra conclusão importante se refere à relação com o Tempo e às dicotomias entre História e Ancestralidade. Vemos que, apesar de essas práticas serem também e justamente o reflexo de um processo de subjetivação e formação dentro e a partir de uma história da arte afro-brasileira, dos pensamentos raciais críticos contemporâneos e das pistas deixadas pelo caminho por artistas de outras gerações, tais poéticas nos parecem estar menos interessadas em aproximações formais com a história, mesmo que essa se refira a uma história moderna afro-brasileira. Com isso, não afirmamos que nomes como Emanuel Araújo, Rubem Valentim ou Lucia Laguna não sejam reverenciados ou não habitem o imaginário dessas artistas: o que percebemos é que há uma mudança de procedimento e uma recusa em manter o gesto linear e progressivo que desde sempre subordina, na história da arte, o futuro sempre presente ao passado. A conclusão a que chegamos, portanto, é que para essas artistas o passado é honrado dentro de uma dinâmica temporal que se constrói a partir da compreensão do tempo na ancestralidade e não do tempo no reino da História.

Quando diz que “aquilo que no corpo e na voz se repete é uma episteme” (LEDA, 2002, p. 72), o pensamento do tempo espiralar de Leda Maria Martins se torna central para as nossas conclusões, já que com ela é possível especular como os “inúmeros processos de cognição, asserção e metamorfose, formal e conceitual” (LEDA, 2002, p. 72), que constituem a cultura da encruzilhada negra nas Américas, transcriam-se na performatividade da própria visualidade. Essa encruzilhada epistêmica que nos oferece Martins nos possibilita, ainda, refutar qualquer intenção de, com estas leituras, estabilizar, impor ou pré-determinar tais práticas a partir de características únicas.

No risco contingente de que as referências visuais históricas componham o nosso lugar da memória, nos resta efabular os caminhos pelos quais a memória do conhecimento se recria e se transmite por outros lugares, dessa vez pelos ambientes da memória: repertórios orais e corporais, seus gestos e hábitos, “cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes.” (LEDA, 2002, p. 72).

A partir das oralidades e afrografias que matizam sobremaneira o arsenal epistêmico dessas e outras artistas — que ficam, então, para um novo texto —, o que desejamos desta vez, repleta de espacialidade, é levantar a questão sobre que tipo de descontinuidade e fratura na linha temporal da história narrada pelo acervo do MAC USP poderia ser reencenada.

Se, como vimos, a abstração já serviu como estratégia de obliteração da dívida impagável que matiza a experiência da racialidade no Brasil, sua prática, além de perturbar as expectativas do tempo histórico, parece “liberar a negritude da obrigação de responder pelo que exige a sua [própria] obliteração” (FERREIRA DA SILVA, 2020). Arrisco, portanto, dizer que ela nos desperta para todo um vasto repertório que excede tudo aquilo que um dia qualquer página ou palavra será capaz de ver e conhecer. Pois só em presença no encontro com você, o espaço, a diferença e o outro, é que suas múltiplas leituras se abrem.

Referências

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Figura 1 Figura 1 Legenda

Peter Scheier, Homens limpando a sala de representação da Suíça. Obras de Sophie H. Taeuber-Arp. Da esquerda para a direita: Escalonamento (1934), Museu de Arte Moderna – São Paulo – SP, 1951. Peter Scheier/ Instituto Moreira Salles.

Figura 2 Figura 2 Legenda

Sophie Tauber-Arp, Triângulos Opostos pelo Vértice, Retângulo, Quadrados, Barras, 1931. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP)

Figura 3 Figura 3 Legenda

Peter Scheier, Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro, Kazmer Féjer e Tomás Maldonado posam ao lado da escultura Unidade Tripartida de Max Bill, na I Bienal de São Paulo, 1951. Peter Scheier/ Instituto Moreira Salles.

Figura 4 Figura 4 Legenda

Max Bill, Unidade Tripartida, 1948-1949. ©Bill, Max/AUTVIS, Brasil, 2022.

Figura 8 Figura 8 Legenda

Ana Almeida, Vista da exposição Buracos, crateras e abraços (parte 2), 2021. Fotografia: Ana Pigosso. Cortesia Central.

Figura 9 Figura 9 Legenda

Iagor Peres, Registro de processo de residência na PLUSAFROT – Villa Waldberta Munique-Alemanha com curadoria de Diane Lima e Mário Lopes, 2019. Fotografia. Ana Paula Mathias

  • 1Discuto mais especificamente o modo como ​​o legado dos movimentos abolicionistas e sociais e os efeitos das políticas afirmativas no sistema educacional brasileiro têm impactado a produção artística e cultural contemporânea no texto Por uma educação que interesse aos negros (2021).
  • 2Trecho referente à entrevista concedida a mim para um livro que estou organizando e será lançado em 2022 pela editora Fósforo. No prelo.
  • 3Escrevi um texto com/sobre o trabalho da escritora e artista Jota Mombaça no livro 20 em 2020: Os artistas da próxima década – América Latina. Ver LIMA, 2020
  • 4Para se aprofundar no que a citação permite ver: FERREIRA DA SILVA, 2016 e FERREIRA DA SILVA, 2007.
  • 5“Em busca do jardim de Laguna” é o texto que escrevi para o livro da artista Lucia Laguna, no qual também abordo a relação com a abstração, a história da arte e a ancestralidade. Ver: LAGUNA, 2021, p. 8
  • 6Elaborei essa hipótese de modo mais aprofundado na minha dissertação de mestrado, a qual concluo com o Tempo Negro. Ver LIMA, 2017, p. 200.