MENU
MAC USP
PROCESSOS
CURATORIAIS
Curadoria Crítica e
Estudos Decoloniais
em Artes Visuais
DIÁSPORAS
AFRICANAS
NAS AMÉRICAS
MAC USP /
GETTY FOUNDATION –
CONNECTING ART
HISTORIES PROGRAM

Relatos de estudantes

Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais nas Artes Visuais: diásporas africanas nas Américas

O objetivo deste relatório é resumir alguns dos tópicos apresentados durante o webinário. Embora apenas uma visão geral de algumas das apresentações, pretendo relatar sobre práticas decoloniais para discussões futuras e uma breve discussão desencadeada pela apresentação de Thomas B. Cummins. A palestra de Cummins explorou práticas coloniais ainda existentes na Espanha. De acordo com Cummins, o Museu do Prado conduz uma limpeza étnica em pinturas feitas na América Espanhola para apagar a negritude de sua coleção e reforçar a ideia de que a Hispanidad é branca e uma força civilizadora. Tal crítica é recebida com respostas amargas, como, por exemplo, a de Isabel Díaz, governadora de Madri, que considera revisionismo histórico a restituição e decolonialidade a partir da visão indígena. Em uma entrevista ao The Wall Street Journal em sua visita oficial à The Hispanic Society (Nova York), Díaz pergunta: “Por que estamos revisando a história da Espanha na América e questionando a hispanidade 500 anos depois… quando tudo o que fez desde o começo foi trazer universidades, civilização e o Ocidente para o continente americano, valores que sustentam democracias prósperas até hoje?” . A pergunta de Díaz evidencia como o racismo colonial, imperial e institucional ainda alimenta a arte, a educação e a política. As apresentações seguintes abordam essa questão e como artistas e pesquisadores estão desafiando o racismo institucional dentro de um recorte decolonial em práticas curatoriais.

Angelica Maria Sanchez intersecciona as obras de Rosana Paulino (Brasil) e Liliana Angulo (Colômbia) e as práticas decoloniais de cada uma. Sanchez argumenta que Assentamento (2012-2013), obra de Paulino, identifica visualmente as mulheres afro-brasileiras como as responsáveis por forjar o Brasil moderno e contemporâneo a partir de seus próprios ventres pelo trabalho forçado, adaptação forçada e Assentamento forçado. Sanchez afirma que Assentamento articula a visão da sobrevivência das comunidades negras e das comunidades de Rosana Paulino, o que torna a posição da artista um dos fundamentos de suas estratégias estéticas decoloniais para romper uma história natural que tradicionalmente tipificou e apagou a negritude. Em Liliana Angulo e seu Portrait of Lucy Rengifo (2007), Sanchez identifica estratégias que interseccionam os trabalhos de Angulo, Paulino e Carrie Mae Weems. A luta e a sobrevivência das comunidades negras nas Américas são costuradas a partir dessa intersecção. Sanchez sugere que essa análise pode revogar as práticas da elite masculina e branca (podemos expandir tais práticas para as mulheres brancas, se lembrarmos da pergunta de Díaz e da palestra de Cummins) que ajustam suas teorias à sua própria conveniência, para autorizar e subjugar identidades negras e indígenas. No final, Sanchez pergunta: “O que acontece quando não permitimos a continuação de construções racistas, como podemos responder a isso?” Seguindo esta questão, o leitor verá que muitas práticas de curadores e pesquisadores focam em fornecer espaço e tempo para experimentar na direção do rompimento. A apresentação de Mônica Cardim ofereceu um rompimento com o olhar colonial e a libertação da noção de que era o único olhar existente dentro dos arquivos fotográficos oitocentistas.

Monica Cardim falou sobre a circulação transatlântica de retratos de povos africanos e afro-brasileiros fotografados por Alberto Henschel no século XIX. Como estratégia para a cura decolonial, Cardim equipara a circulação desses retratos a uma espécie de segunda onda do tráfico humano e da Diáspora Africana das Américas para a Europa pela materialidade das fotografias em que os sujeitos eram racializados e objetificados com base em teorias científicas racistas do século XIX. Esses retratos tornavam os africanos e afrodescendentes invisíveis como seres humanos, sem nome, não identificáveis e sem História. No entanto, Cardim ressalta que os africanos e afrodescendentes estavam cientes desta prática colonial e usaram fotografias para combater tais tentativas de apagamento e romper o arquivamento colonial. Segundo Cardim, os contra-retratos podem ser lidos dentro do conceito de Ubuntu que intersecciona individualidade e coletividade para criar uma cura colonial. No entanto, a cura colonial também deve ocorrer fora dos arquivos coloniais e da produção de arte acadêmica, e é neste ponto que Renata Felinto toca.

Renata Felinto aborda as estratégias estéticas de artistas negras no Brasil que colocaram suas próprias influências contextuais históricas, geográficas e culturais dentro de suas práticas. Felinto aponta que, devido à especificidade de suas localizações e suas experiências de vida, essas artistas vão além das soluções estéticas acadêmicas. Ao olhar para artistas como Ana das Carrancas, Felinto propõe a leitura crítica das práticas articulando coletividade não monolítica e histórias individuais. Dessa forma, a pesquisadora pretende romper a narrativa da arte no Brasil como uma continuação da história da arte europeia, observando, então, a realidade de produção dessas artistas. “Elas não são ‘artistas modernas’, e são contrárias a isso, não poderiam se beneficiar de projetos de urbanização do século XX, pois estavam na periferia ou na área rural. A arte faz parte de sua sobrevivência diária, o que restabelece o vínculo entre a vida e a arte”, diz Felinto. A pesquisadora também ressalta que essas artistas não só tais artistas não são encontradas dentro da história da arte canônica europeia, mulheres negras também foram apagadas de locais de curadoria de forma geral. Ao revelar as estratégias dessas artistas e a influência do entorno em suas práticas para além das soluções estéticas acadêmicas, Felinto revela a resiliência, a subjetividade e as estratégias artísticas delas ao analisar quem são e de onde vêm, sua posição e a intersecção de suas práticas. A interseccionalidade permeará, também, os aspectos colaborativos da curadoria que Thiago de Paula Souza apresentou em seguida.

A apresentação de Thiago de Paula Souza baseou-se em uma pergunta inicial: Como criar experimentos curatoriais com a participação de artistas afetados pela violência colonial e, ao mesmo tempo, como escapar da apropriação pelo olhar colonial neoliberal? Segundo Souza, essa questão gera a estratégia de recusa praticada tanto por curadores quanto por artistas. Uma estratégia para desaprender categorias coloniais que permearam a modernidade como coreografias institucionais racistas, como coloca Souza. Ou seja, o conhecimento e a aprendizagem são performados dentro dos espaços institucionais coloniais para permitir que alguns grupos participem como cidadãos plenos e outros não. Ao romper um esquema de categorização, por exemplo, a pintura abstrata de Juliana dos Santos é uma recusa dentro de espaços institucionais, rompendo suas coreografias racistas. Souza menciona que tal “estratégia de recusa”, como colocado por Tina Campt, busca evitar que a produção artística de artistas negros e indígenas seja usada para agradar às necessidades neoliberais. Neste recorte, Souza enfatiza a necessidade de colaboração entre artistas e curadores, bem como a de homenagear processos criativos e problematizadores cotidianos. Uma ampla articulação da coletividade é sugerida por Luzia Gomes, a quem a produção literária das mulheres negras fornece as bases para a criação de um arcabouço decolonial que afete teorias museais.

Luzia Gomes propõe enquadrar a criatividade e a inovação além da denúncia do racismo institucional como um caminho para responder à questão de como nós ‒ afrodescendentes ‒ olhamos as exposições em museus. Gomes destaca os trabalhos de Fernanda Felizberto, Janaina Damasceno, Roseanna Borges, entre outras, cuja produção acadêmica aborda o deslocamento das mulheres negras na literatura para afirmar um direito (negro) de olhar. Partindo disso ‒ o que leva a insurgência afro-brasileira e ao protagonismo das mulheres negras ‒, Gomes afirma que as imagens podem ser vistas como categorias de transformação, e que o surgimento de uma visão africana pavimenta o caminho para este olhar, levando, então, ao direito de articular exposições sobre a produção e a busca de novos projetos curatoriais.

Ao final da apresentação de Gomes, outros participantes acrescentaram pontos produtivos, por exemplo a atualização de bell hooks sobre a práxis pedagógica de Paulo Freire, ao adicionar amor e cura como práticas pedagógicas decoloniais. Além da fala de Gomes de que nós ‒ afrodescendentes ‒ temos um direito posicional específico de olhar, Thiago de Paula Souza sugere que “o museu pode ser visto como uma ferramenta para redistribuir poderes e afetos por exposições temporárias com coleções especiais, aproveitando as soluções para o agora, e não para o sempre”. Gomes semeou uma discussão para o futuro. Enquanto Souza fala sobre o uso de coleções especiais de museus, Gomes pergunta como usar fontes além das coleções de museus e, ao mesmo tempo, dialogar com a teoria do museu. Gomes aponta que esta questão nos levará em direção às políticas públicas e ao fato de que os museus não fazem nada, e sim as pessoas que trabalham neles. As estratégias de Souza e de Gomes são valiosas para o comum objetivo de liberdade e libertação. A questão de Gomes deve ser pensada junto com a próxima apresentação abordando a branquitude e o apagamento da subjetividade negra, uma vez que ambas envolvem as pessoas dentro e fora dos museus, exposições e narrativas da história da arte brasileira. Talvez possamos perguntar: se os museus são feitos de pessoas que buscam, ou não, revogar o racismo institucional, quem são essas pessoas? Importa se são negros ou brancos?

Kleber Amâncio falou da branquitude brasileira e de como esta branquitude apagou ou silenciou a negritude, e especificamente, a produção brasileira de arte negra. “A arte é um exercício de liberdade” para Amâncio e Mario Pedrosa, então, para nos libertarmos, precisamos romper e desafiar as narrativas da história da arte brasileira para trazer a produção de arte negra para o primeiro plano. Uma estratégia proposta pelo conhecimento de Amâncio é desvendar a branquitude para revelar como o apagamento da negritude foi visualmente articulado em obras de artistas brancos brasileiros e como as leituras dessas obras apoiaram este apagamento. Especificamente, Amâncio usa a obra de Tarsila do Amaral, A Negra, de 1923, juntando novas abordagens à antiga análise formal da obra para apoiar seu exercício decolonial. Amâncio aponta para as obras de Tarsila do Amaral, Heitor dos Prazeres e Portinari, cujas estratégias visuais representam os corpos negros diminuindo-os de sua capacidade intelectual, apagando suas subjetividades e retratando um corpo pacificado. Em contrapartida, ao falar sobre o trabalho do artista negro brasileiro Arthur Timóteo da Costa, Amâncio parafraseou Chinua Achebe: “Não é suficiente que os negros sejam representados, mas que possam representar e, portanto, serem seres humanos”. Pode não parecer uma proposta de rompimento, mas dizer que os afrodescendentes e os povos africanos são seres humanos ainda carrega o peso da opressão, mas, também, os meios para a libertação. Uma libertação que pode ser feita não por imagens de pacificação, mas pelo paralelo sequencial da visão da branquitude, da negritude e da exibição documental para romper as narrativas coloniais.

Igor Simões pensa na exposição como uma sala de edição na qual fragmentos de histórias, experiências e práticas são colocadas juntamente como estratégia curatorial para criar atritos visuais. Em uma relação conflituosa, diz Simões, as obras colocadas em sequência por vezes concordam ou discordam concordam umas com as outras em romper a história branqueada da arte brasileira. Simões perguntou o que acontece quando Assentamento de Rosana Paulino e A Negra de Tarsila do Amaral são exibidos lado a lado? O que acontece quando uma obra de arte que articula a negritude como uma força coletiva subjetiva, como feito por Paulino, e uma obra de arte que articula a negritude tipificada como em A Negra, são vistas juntas? Ou, o que acontece quando a obra de Rubem Valetim é exposta junto à figura de um falso Exu bestial na obra de Mario Cravo Jr.? Segundo Simões, o que acontece é o convite a uma discussão e não a uma narrativa curatorial estabilizada (branqueada).

Voltando à pergunta de Isabel Díaz sobre “Por que estamos revisando a história da Espanha na América?”, gostaria de expandir essa questão para “Por que estamos revisando a história das Américas com afrodescendentes e indígenas em seu primeiro plano?” Acredito que este webinário respondeu a essa pergunta e foi além; o webinário ofereceu estratégias práticas para revisar, romper e, espero, revogar práticas coloniais. Tiago de Paula pediu uma redistribuição urgente dos recursos de museus. Igor Simões propôs a inserção de documentos junto às imagens em uma exposição de arte para causar atrito. Renata Bittencourt pediu que museus mudem de local e permitam que o público determine o que um novo museu deve ser, fazer e realizar. Se práticas tradicionais de museus são consensuais, este consenso deve ser conhecido e discutido, afirmou Bittencourt. Neste relatório, o paradigma tradicional dos museus tem branqueado e apagado a negritude. Tem apagado a produção de arte negra e indígena e representado os negros como pacificados, bestializados e subjugados. Talvez, seja isto o que Isabel Díaz quis dizer ao afirmar que “tudo o que fez [a colonização espanhola] foi ‘trazer universidades, civilização e o Ocidente para o continente americano”. De certa forma ela está certa, pois o ideal da democracia neoliberal foi fundado em tais instituições racistas. Em contrapartida, Renata Bittencourt afirma que o museu contemporâneo é o museu do debate e do atrito, onde o racismo institucional pode ser exposto e onde a experimentação substitui a canonização. Um museu político que pode ser um espaço para a ressurreição em vez de pacificação. Uma ressurreição armada por audaciosos conhecimentos e práticas curatoriais decoloniais, apresentada pelos palestrantes convidados neste webinário. Minha esperança como uma mulher negra, artista visual e pesquisadora é que os relatos deste webinário, em sua diversidade de abordagens e interseccionalidade, possam funcionar como manuais de guerrilha não lineares a serem usados por mim, por muitos, em qualquer lugar, traduzidos em múltiplas línguas. Assim podemos sonhar, criar, inovar e, principalmente, romper as instituições capitalistas/racistas ao exercer o nosso direito coletivo de fazer e olhar para a arte além das fronteiras institucionais.