MENU
MAC USP
PROCESSOS
CURATORIAIS
Curadoria Crítica e
Estudos Decoloniais
em Artes Visuais
DIÁSPORAS
AFRICANAS
NAS AMÉRICAS
MAC USP /
GETTY FOUNDATION –
CONNECTING ART
HISTORIES PROGRAM

Palestras

Cura decolonial de retratos transatlânticos: retratos da afrodiáspora na fotografia de Alberto Henschel

“para este país eu trouxe meus orixás sobre a minha cabeça toda minha árvore genealógica antepassados, as raízes” (LUBI PRATES, 2019, p. 28)

A contemporaneidade está marcada como um momento em que nos comunicamos por imagens virtuais mediadas por equipamentos eletrônicos. Por meio de celulares, notebooks, computadores, recebemos e enviamos imagens de nossos corpos ou, na maioria das vezes, de nossas faces. Conectados por esses aparatos de comunicação remota, sem que haja necessidade de qualquer deslocamento físico, estabelecemos contato virtual, regular e seguro com familiares, amigos, professores, chefes e demais pessoas de distintos pontos do planeta, o que contribui para manter vivas nossas relações sociais e alimentar nossa humanidade.

O objetivo dessa reflexão inicial é ressaltar que, a despeito da dimensão virtual das imagens na atualidade, ainda nos valemos da materialidade dos equipamentos e não podemos prescindir dela para nos comunicar. Espero, desse modo, partir de uma reflexão sobre como se dá a experiência com a materialidade da imagem no século XXI para propor um olhar para os retratos de pessoas africanas e afrodescendentes produzidos pelo fotógrafo Alberto Henschel (1827-1882) no Brasil oitocentista (Figs. 1-2). Tais fotografias foram transportadas para a Alemanha a fim de serem exibidas na exposição educativa sobre a América do Sul organizada pelo geógrafo Alphons Stübel (1835-1904). Trata-se de representações de uma parcela da afrodiáspora que teve suas imagens capturadas e comercializadas em uma operação que pode ser considerada como uma espécie de continuidade da longa triangulação transatlântica vivenciada pelos próprios indivíduos ou por seus ancestrais. Foram transladados da África para as Américas, enquanto corpos escravizados, e das Américas para a Europa, enquanto fotografias de seus corpos.

Essas pessoas, ao serem tomadas como mercadoria, tanto em forma de “carne” humana quanto em forma de imagens fotográficas, tiveram seus corpos colocados em evidência em detrimento de seus conhecimentos, suas histórias, suas culturas, suas percepções de mundo. A reificação desses corpos é enfatizada quando as fotografias são exibidas sem identificação dos retratados segundo uma perspectiva etnográfica, ou seja, enquanto recurso de categorização hierarquizante da humanidade, em uma exposição designada a contribuir no empreendimento colonial europeu. Proponho nessa análise, de viés decolonial, que os retratos fotográficos sejam abordados levando em conta o seu poder de agenciamento sobre as relações sociais. Para tanto, me utilizo dos estudos de Alfred Gell, em que ele afirma que os objetos artísticos têm poder de agência, isto é, possuem a faculdade de atuar nas relações sociais. O autor relaciona a agência dos objetos artísticos às intenções dos “agentes humanos” (GELL, 1998, p. 17) envolvidos em sua produção, consumo e circulação. A opção por essa abordagem não implica considerar os retratos, em sua maioria em formato carte-de-visite, como objetos artísticos. Trata-se de, a partir da identificação da intencionalidade dos agentes envolvidos na concepção e montagem da referida exposição, reconhecer os retratos como objetos aos quais se atribuem significados que afetam as relações sociais, considerando sua materialidade e a forma como foram apresentados.

O texto surge da urgente necessidade de desconstruir a ideia de hegemonia da racionalidade eurocêntrica estabelecida pelos mecanismos do poder colonial e do desenvolvimento capitalista global, que permitem violências cotidianas, de ordem simbólica e física, a pessoas não brancas. Desse modo, para conduzir uma discussão que seja capaz de promover uma cura decolonial desses retratos, considero fundamental identificar as dimensões da colonialidade presentes na proposta curatorial que resultou na sua exibição no século XIX.

Entendo como cura decolonial um exercício crítico, com viés político-pedagógico, que problematiza a noção de humanidade racialmente hierarquizada, legitimada com a contribuição da fotografia etnográfica. Inúmeros são os pensamentos, pesquisas e experiências no campo da arte, da educação e da crítica trazida por curadoras e curadores africanos, afrodescendentes e indígenas que vêm contribuindo para essa discussão, mas, para dar embasamento teórico a esse texto, trago a concepção de arte como cura, no sentido ritualístico proposto por Ayrson Heráclito. O autor aponta a necessidade de limpeza e exorcismo dos “fantasmas da sociedade colonial” (HERÁCLITO apud TESSITORE. 2018, s.p.). Minha intenção é estabelecer um diálogo entre a concepção de Heráclito e a proposta de produção artística negra, de espírito libertador, antecipada por Abdias Nascimento em seu compromisso com a luta pela “humanização da existência humana ” (NASCIMENTO, 1976, p. 180).

Figura 1 Figura 1 Legenda

Alberto Henschel & Co. Africanas e Afro-brasileiras, Pernambuco, c. 1869. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel.

Figura 2 Figura 2 Legenda

Alberto Henschel & Co. Africanos e Afro-brasileiros, Bahia. c. 1869. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel.

Da trajetória transatlântica à exposição

A continuidade da triangulação transatlântica dos corpos de pessoas africanas e afrodescendentes por meio da s cartes-de-visite produzida s nos estúdios de Alberto Henschel, renomado empresário da fotografia, se deu por meio da bagagem de distintos viajantes e colecionadores alemães no século XIX. Neste artigo abordamos os retratos, cujos deslocamentos resultaram da expedição realizada por Alphons Stübel, que em sua passagem pelo Brasil adquiriu as fotografias diretamente nos estúdios de Henschel.

Alphons Stübel, geólogo e explorador geógrafo alemão, empreendeu uma viagem pela América do Sul em 1868, parte dela na companhia do também pesquisador alemão Wilhelm Reiss (1838-1908). A expedição, cujo objetivo inicial era o estudo de vulcões no Havaí, começou na Colômbia e no Equador, passou pelo Peru e Brasil, de onde Reiss retornou à Alemanha depois de adoecer. Stübel seguiu para o Uruguai, Argentina, Chile e Bolívia, passou novamente pelo Equador e Peru, e terminou seu trajeto nos Estados Unidos em 1877. Nos anos seguintes, Stübel, além de fazer outras viagens exploratórias, dedicou-se à criação de um museu para abrigar o material coletado e viabilizar sua organização.

A fim de justificar a fundação do Museu de Geografia, Alphons Stübel, em carta enviada à Câmara Municipal de Leipzig no ano de 1891, explica que um de seus objetivos era a disponibilização de documentos capazes de contribuir com os estudos geográficos da época, cuja compreensão seria particularmente relevante aos “empreendimentos coloniais” de seu tempo (STÜBEL, 1891). O museu seria organizado como um arquivo que preservaria para a posteridade a produção originária de suas viagens, tais como diários, fotografias, desenhos e registros cartográficos.

Para a concretização de seu projeto, Alphons Stübel doou à Câmara Municipal de Leipzig, em 1892, a sua coleção geográfica constituída de 82 pinturas a óleo, mais de 100 desenhos à mão, cerca de 2.000 fotografias e uma série de mapas, relacionados às regiões vulcânicas da América do Sul. Após essa doação, Stübel realiza, em 1896, a primeira versão da Exposição Educativa de sua coleção no Museu de Etnologia de Leipzig (WAGNER, 1905). Ainda que não haja registros visuais da exposição focada nos países sul-americanos, a pesquisa desenvolvida por Andreas Krase oferece uma ideia de como foi organizada e de que forma Stübel pretendia colaborar com os empreendimentos coloniais contemporâneos. Em sua descrição, Krase relata que sucessões de panoramas, de diferentes dimensões, alguns com vários metros de largura, traziam vistas dos países visitados. Pinturas feitas pelo equatoriano Rafael Troya, contratado e treinado por Stübel para documentar a expedição no Equador, mostravam o acampamento dos exploradores tendo os vulcões como pano de fundo. Desenhos topográficos de encostas montanhosas, cortadas especialmente para registro, davam testemunho do rigor do método científico. As fotografias documentavam a paisagem em estado natural, as intervenções arquitetônicas, os meios de transportes e as populações originárias, africanas e europeias residentes em cada região (KRASE. 1985; 1994).

A figura 3 mostra um ângulo da Exposição Educativa já situada no Museu Geográfico (BERGT, 1906). Na imagem, vê-se que o público visitante, ao dar alguns passos após a entrada, podia visualizar o busto de Alphons Stübel sobre um pedestal. Trajando uma indumentária formal, o pesquisador surge em meio ao seu legado. A materialidade da exposição deveria oferecer um recorte do mundo visitado por Stübel sem focar nos contratempos característicos de uma viagem no século XIX. O percurso ao longo desse novo espaço abrange, como no anterior, panoramas, fotografias, desenhos, pinturas e objetos organizados por países de forma padrão, isto é, com sucessão de imagens das cidades, natureza, arquitetura, meios de transportes e as populações locais e estrangeiras.

Figura 3 Figura 3 Legenda

Autoria não identificada. Museu Geográfico, Leipzig, 1906. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel.

Segundo Andreas Krase, as fotografias apresentadas na sessão sobre o Brasil, na versão da exposição de 1896, mostravam tanto vistas do Palácio Imperial quanto panoramas da capital do Rio de Janeiro. As fotos da cidade davam a ver a arquitetura, o porto e os meios de transporte, partindo de planos gerais para detalhes. No contexto amazônico, algumas fotografias da paisagem eram também usadas como fundo em montagens com retratos de indígenas. A seguir estavam expostas as imagens denominadas por Stübel de “fotografias de tipos”, séries de fotos de homens e mulheres, de origem espanhola, africana e afrodescendente, coladas em grupos de cerca de nove unidades por prancha. Por fim, eram exibidos os retratos do Imperador Dom Pedro II, da Imperatriz Teresa Cristina e do ex-presidente do Paraguai identificado como “El Ditador López”, todos numa mesma lâmina (KRASE, 1994).

A galeria de retratos de africanos e afro-brasileiros era constituída por 54 imagens distribuídas em seis passe-partout com cerca de nove imagens cada. Diferentemente daqueles em posição de comando, as pessoas negras não tinham suas imagens associadas a seus nomes. As tipificações por fenótipo abarcavam os conjuntos organizados por gênero e posição social: “Tipos negros. Escravas, algumas nascidas na África”, “Tipos negros. Escravos, alguns nascidos na África”, “Tipos negros do Brasil” e “Raças miscigenadas”.

Dimensões da colonialidade

Segundo Andreas Krase, as cerca de 2.000 fotografias da Coleção Alphons Stübel tiveram menos importância na exposição, se comparadas aos desenhos e pinturas. As fotos atuavam como material ilustrativo da visão de mundo do geógrafo sobre cada país explorado. Ao contrapor natureza, edifícios e estratos sociais em uma organização padronizada entre os distintos países, Stübel parecia querer demonstrar uma suposta fixidez nas relações sociais hierarquizadas (KRASE 1985; 1994).

É sobre essa fixidez da apresentação da sociedade na relação com natureza e a geografia da América do Sul que faremos as análises tanto da intenção de Alphons Stübel em contribuir com os empreendimentos coloniais de seu tempo, quanto da proposta de estabelecimento de um caminho teórico para uma cura decolonial possível, por meio de retratos fotográficos de pessoas africanas e afrodescendentes, no tempo presente do século XXI.

Em seus estudos sobre as matrizes do atual poder mundial, em que se incluem as formas de exploração e dominação global, Aníbal Quijano chama atenção para o fato de que a maioria dos “explorados”, “dominados” e “discriminados” pertence às “raças”, “etnias” ou “nacionalidades” atribuídas às populações colonizadas. Para o autor, o processo de colonização da América naturalizou esses marcadores sociais, especialmente a noção de raça, que seria fundante da estrutura de poder mundial contemporânea (QUIJANO, 1992). Em outras palavras, é a partir da invasão e apropriação da América pelos europeus que se dá o desenvolvimento do capitalismo mundial (moderno, eurocêntrico e colonial) em uma articulação histórica com a racialização como ferramenta de controle social e classificação hierarquizante dos grupos humanos.

A fim de orientar as conexões entre a proposta curatorial de Alphons Stübel na Exposição Educativa sobre a América do Sul e a discussão acerca da colonialidade de Aníbal Quijano, tomo como referência a contextualização teórica realizada por Catherine Walsh a partir da obra do segundo (WALSH, 2009). No seu texto, a autora aponta dimensões da colonialidade que, articuladas entre si, resultaram nos desenhos globais de poder, capital e mercado da atualidade: a colonialidade do poder, a colonialidade do ser, a colonialidade do saber e a colonialidade cosmogônica. A primeira dimensão, ainda atuante nas relações de dominação e subordinação do mundo contemporâneo, operou no estabelecimento e fixação de uma estratificação social dos grupos humanos a partir da noção de raça. A segunda, por meio de categorizações binárias polarizadas como, por exemplo, civilizado-primitivo, legitimou o reconhecimento de humanidade em determinados grupos e a negação dessa humanidade em outros. A terceira atuou na pressuposição do eurocentrismo como perspectiva hegemônica, enquanto a quarta e última dimensão apontada por Walsh anulou filosofias, expressões da espiritualidade e do sagrado, bem como compreensões de mundo da diáspora africana e de povos indígenas, fixada na diferença binária cartesiana homem/natureza.

Já Aníbal Quijano, ao tratar da colonialidade, explica que a suposta superioridade natural de brancos – principalmente europeus – foi expressa em uma “operação mental de fundamental importância para todo o padrão de poder mundial, principalmente com respeito às relações intersubjetivas” (QUIJANO, 2005, p. 120). É nessa operação mental que identifico a agência dos retratos de tipos humanos na exposição educativa sobre a América do Sul, destinada ao público europeu em geral e a especialistas interessados em se preparar para a realização de viagens e pesquisas análogas às de Stübel.

Na exposição, as fotografias atuam de forma a transformar as relações intersubjetivas dos europeus entre si, e dos europeus com não europeus. Ao serem vistos em uma organização que fixa as posições sociais dos grupos categorizados por raça, os retratos informam aos visitantes sobre a posição de dominação a eles reservadas e de subalternidade aos não europeus, materializando a colonialidade do poder. As oposições binárias primitivo-civilizado, tradicional-moderno, mágico-científico, europeu-africano, percebidas na comparação entre os retratos de pessoas negras e os de brancas, legitimam a polarização racional-irracional, humano-desumano, em que podemos identificar a colonialidade do ser. Como consequência, os retratos operam nas relações intersubjetivas entre brancos e não brancos, e destes com os africanos e indígenas, sendo os primeiros tomados como produtores de conhecimento e os demais tomados como objeto de estudo, dando conta da colonialidade do saber.

Por fim, articuladas às anteriores e tão importantes quanto elas, está a colonialidade da mãe-natureza, a chamada colonialidade cosmogônica, que diz respeito à invalidação dos princípios éticos, filosóficos e espirituais das comunidades indígenas e afrodiaspóricas. Fixada no binarismo cartesiano entre humanidade e natureza, essa operação da colonialidade anula as percepções de mundo espirituais e sagradas que compreendem o mundo terreno como intrinsecamente conectado com o espiritual, e que reconhecem a terra e os ancestrais enquanto seres vivos. A anulação da racionalidade e das práticas de existência de populações africanas e afrodescendentes se dá ao serem categorizadas pelo discurso colonial como não modernas e “pagãs” (WALSH, 2009).

Nos retratos, identificamos essa forma de anulação ao observarmos, por exemplo, elementos próprios do sagrado afro-brasileiro, como o turbante, sendo mostrados unicamente como um certo padrão do modo de vestir, quando se trata de uma peça denominada torço nos terreiros de candomblé, que tem a função de proteger o ori da pessoa que o veste. O mesmo poderia ser dito dos quipás usados por figuras masculinas, ou os panos da costa. Estes, junto com os turbantes, de acordo com as amarrações, guardam informações acerca da posição hierárquica da pessoa no terreiro e da sua relação com os orixás. A ausência de informação sobre o fato dos turbantes e panos da costa constituírem-se como parte de práticas de existência sagrada das pessoas retratadas conduz a um tipo de agência das imagens sobre o público visitante que é levado a ver corpos negros, destituídos de suas identidades individuais e coletivas.

Podemos citar outro exemplo (Fig. 4), em que as roupas são utilizadas como critério de organização, remetendo ao aspecto cultural de forma padronizada e um tanto exótica, ou mesmo contribuindo para a erotização dos corpos. Utilizando-se de um leque tipicamente ocidental, a jovem da primeira imagem, situada na segunda linha, apoia-se em um móvel, valendo-se de uma pose característica de retratos não etnográficos, frequentemente utilizada para construção e valoração da identidade social de uma mulher branca no século XIX. A despeito do leque e do móvel, o turbante e as roupas da jovem informam sua origem e cultura não ocidentais; porém, seu ombro desnudo confere erotismo à pose. O retrato, como parte da série denominada “Tipos Negros. Escravas, algumas nascidas na África”, não deixa dúvidas sobre a posição social e de gênero atribuída à mulher retratada.

Figura 4 Figura 4 Legenda

Alberto Henschel & Co. Afrobrasileiras, Bahia, c. 1869. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel

Cura Decolonial

Ao conectar alguns aspectos da Exposição Educativa sobre a América do Sul, em que foi exibida a série de retratos de africanos e afro-brasileiros produzida por Alberto Henschel, com as dimensões do poder colonial debatidas por Aníbal Quijano, busquei demonstrar que a organização curatorial de Alphons Stübel atribuiu aos retratos um caráter informativo, baseado na noção de raça, visando estabelecer uma posição de inferioridade desse grupo de pessoas na escala mundial de poder. Desse modo, se essa análise se mostra pertinente, podemos concluir que o poder de agenciamento das fotografias de “tipo racial” na exposição residiu em justificar a base escravista da estrutura econômica colonial que, como explica Quijano, estruturou o desenvolvimento do capitalismo global contemporâneo. Nesse processo, os retratos contribuíram para o apagamento das histórias, saberes e culturas de matriz africana e afro-brasileira, ao mesmo tempo em que evidenciaram os corpos de pessoas negras como corpos destituídos de subjetividade.

*

Para finalizar este artigo com uma proposta de cura decolonial dos retratos analisados aqui, afasto-me da tela do computador e escrevo à mão em meu caderno de notas. Tal gesto me remete à reflexão inicial sobre a materialidade dos aparelhos eletrônicos de que nos valemos para nos comunicarmos atualmente de forma segura. A segurança física da comunicação virtual, no entanto, não se aplica à nossa sanidade mental. A racionalidade civilizatória ocidental, que localiza unicamente na mente a razão humana, ignora saberes ancestrais de matriz africana, que reconhecem a cabeça como lugar de espiritualidade e de conhecimento, e identificam o corpo como instrumento de expressão dos saberes sagrados. Somos corpos inteiros. Somos corpos coletivos. A visualização de nossas faces pelos pulsos eletrônicos nas telas não dá conta de comunicar quem somos. Da mesma forma, como vimos, os retratos de tipos de pessoas africanas e afrodescendentes não deram conta, na exposição organizada por Stübel, de mostrar ao mundo europeu a alternativa de uma racionalidade não ocidental, possuidora de uma humanidade una não só com a natureza, mas com seus ancestrais e descendentes.

Como referência para a cura decolonial desses retratos, proponho observar o deslocamento transatlântico feito por Ayrson Heráclito, entre o Brasil e o Senegal para a realização de ações performáticas em dois monumentos arquitetônicos relacionados ao tráfico de escravizados e ao poder colonial: O Sacodimento da Casa da Torre, na Bahia, e O Sacodimento da Maison des Esclaves (Casa dos Escravos), na Ilha Gorée (2015). Heráclito, enquanto ogã sojatin de um humpame de Jeje-Maí, na cidade de Salvador, tem autoridade para os sacodimentos, rituais de limpeza praticados com folhas sagradas. Ao realizar essa limpeza espiritual em estruturas arquitetônicas simbólicas da desumanização das populações africanas, o sacerdote/artista se utiliza de conhecimento pré-colonial africano para exorcizar as violências conduzidas pela racionalidade civilizatória europeia no passado, mas ainda atuantes no presente. Proponho associar a performance de Heráclito ao projeto de Abdias Nascimento, que advogava por uma produção artística negra de espírito libertador que explicitasse ao mundo que a memória dos afro-brasileiros é anterior aos primórdios da escravização dos africanos no século XV e ao tráfico transatlântico (NASCIMENTO, s.d). Acredito que a função político-pedagógica dessa cura decolonial reside em contribuir para a transformação das relações intersubjetivas contemporâneas, de forma a romper a fixidez da estrutura social e de classe construída a partir da racialização e hierarquização da humanidade.

Tendo reconhecido os retratos etnográficos em seu papel de agenciadores do colonialismo, assim como os monumentos arquitetônicos exorcizados por Heráclito, cabe-nos identificar os rituais de purificação apropriados para sua cura decolonial. Assim, proponho o exorcismo da colonialidade agenciada nos retratos denominados “tipos”, pela exclusão desse termo do enunciado dessas imagens em suas futuras circulações. Para dar início à tentativa de (re)construção das identidades das pessoas retratadas, a sugestão é substituir as denominações raciais, características do discurso de branqueamento das populações negras (miscigenadas, mulata, cafuza, parda), atualizando-as por afrodescendentes, afrodiaspóricas, afro-brasileiras. Associado ao gesto de renomeação, minha proposta é recorrer à pesquisa e ao exercício da imaginação para identificar, por meio da materialidade dos objetos presentes nas imagens (tecidos, vestes, estampas, chapéus, quipás, turbantes, panos da costa, joias etc.) a que práticas culturais e sagradas pertenciam às pessoas retratadas. Cabe, ainda, buscar reconstituir a circulação dos retratos no Brasil do século XIX para identificar, tanto quanto possível, o nome e a história dessas pessoas.

Espero que tais sacodimentos limpem o peso das dimensões coloniais das imagens para libertarmos a humanidade das pessoas encapsuladas nos retratos etnográficos do século XIX. Humanidade que, a despeito da objetificação dos corpos, nunca deixou de existir.

Que Exu nos conceda os caminhos abertos.

Referências

BERGT, Walther. Die Abteilung für Vergleichende Länderkunde am Städtischen Museum für Völkerkunde zu Leipzig. Jahrbuch des Museum für Völkerkunde zu Leipzig. Leipzig: Voigtländer, 1906.

GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Clarendon Press, 1998.

HENSCHEL, Alberto e Co. Leibniz Institute for Regional Geography, Archive for Geography. c. 1869. Disponível em: https://leibniz-ifl.de/forschung/forschungsinfrastrukturen/digitale-sammlungen/collection-alphons-stuebel . Acesso em: 28 fev. 2022.

HERÁCLITO, Ayrson. apud. TESSITORE, Mariana.Ayrson Heráclito, um artista exorcista. Arte ! Brasileiros. jun. 2018. Disponível em: https://artebrasileiros.com.br/sub-home2/ayrson-heraclito-um-artista-exorcista/: Acesso em: 28 fev. 2022.

KRASE, Andreas. Von der Wilderheit der Szenerie eine Deutliche Vorstellung . (Dissertação de Mestrado) – Bereich Kunstwissenscheft. Berlin Humboldt-Universität, 1985.

KRASE, Andreas. Von der Wildheit der Scenerie eine Deutliche Vorstellung: die Fotografiesammlung von Alphons Stübel und Wilhelm Reiss aus Lateinamerika 1868 – 1877. Spurensuche, 1994, p. 145 – 158.

KOHL, Frank Stephan. Um olhar europeu em 2000 Imagens: Alphons Stübel e sua coleção de Fotografias da América do Sul. Studium, n. 21, jun. 2005, p. 5174. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/studium/article/view/12221. Acesso em: 28 fev. 2022.

NASCIMENTO, Abdias. Arte Afro-brasileira. Black Art: an International Quarterly, New York, 1976.

NASCIMENTO, Abdias . O quilombismo. In: Afrodiáspora 5 e 6. Revista do Mundo Negro. Ipeafro, PUC SP, ano 3, n. 6 e 7, 1985. p. 2140. Disponível em: https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/afrodi_spora_-_volume_6_e_7. Acesso em: 28 fev. 2022.

PRATES, Lubi. Um Corpo Negro. São Paulo: Nosostros Editorial, 2019.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005, p. 117142.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Perú Indígena, v. 13, n. 29, Lima: Instituto Indigenista, 1992.

TURAZZI, M. Inez. Poses e Trejeitos: a Fotografia e as Exposições na Era do Espetáculo (1839 – 1889). Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

WAGNER, Paul. Illustrierter Führer Durch das Museum für Länderkunde (Alphons Stübel-Stiftung.) Leipzig: Museum Für Völkerkunde, 1905.

WALSH, Catherine. Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: In-surgir, Re-existir e Re-viver. In: MARIA, Vera.(org.). Educação Intercultural na América Latina: entre Concepções, Tensões e Propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras. 2009, p. 1243.

Figura 1 Figura 1 Legenda

Alberto Henschel & Co. Africanas e Afro-brasileiras, Pernambuco, c. 1869. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel.

Figura 2 Figura 2 Legenda

Alberto Henschel & Co. Africanos e Afro-brasileiros, Bahia. c. 1869. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel.

Figura 3 Figura 3 Legenda

Autoria não identificada. Museu Geográfico, Leipzig, 1906. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel.

Figura 4 Figura 4 Legenda

Alberto Henschel & Co. Afrobrasileiras, Bahia, c. 1869. Leibniz Institute for Regional Geography. Archive for Geography, Collection Alphons Stübel

  • 1Alberto Henschel trabalhava com os formatos cartes-de-visite e cartes-cabinet. Patenteado em 1854 pelo francês André-Adolphe-Eugène Disdéri, o formato carte-de-visite correspondia a fotografias de 9,0 x 5,5 cm produzidas a partir de um negativo de vidro, copiadas em papéis albuminados ( tratados à base de clara de ovos) e coladas sobre cartões rígidos. A popularização da noção de retrato como símbolo de distinção social e status resultou do seu barateamento possibilitado pela s cartes-de-visite. O formato carte-cabinet surgiu na década de 1860 e designava de provas de 14 x 10 cm, um pouco maior que a s cartes-de-visite, que eram coladas em cartões de 16,5 x 10,5 cm com espaço para inscrições e decorações mais elaboradas (TURAZZI, 1995).
  • 2Stübel, após passar pela floresta amazônica, seguiu para o Sul do Brasil pela costa brasileira a partir do Pará, passando por Recife, Salvador e Rio de Janeiro, cidades em que Henschel possuía estúdios. Esse trajeto nos permite supor que ele tenha comprado os retratos em cada cidade, mas considerando que os estúdios comercializavam as fotografias produzidas nas filiais, é possível que tenham sido adquiridas em apenas um deles, mais provavelmente o Photographia Alemã, localizado na corte carioca.
  • 3Na coleção de fotografias de Stübel constam fotografias do Paraguai. É possível que em seu retorno tenha passado pelo país, considerando os países fronteiriços: Brasil, Argentina e Bolívia. Sabe-se, no entanto, que os estúdios ofereciam fotografias de outras regiões.
  • 4O material arqueológico relativo às escavações em Ancon, Peru, já havia sido encaminhado ao Real Museu de Etnografia de Berlim em 1887, q ue, em contrapartida, financiou os três volumes da publicação Das Todtenfeld von Ancon in Peru, acerca dos resultados dessas escavações. (KOHL, 2005, p. 62)
  • 5Segundo inventário do acervo fotográfico da Coleção de Alphons Stübel realizado pelo pesquisador Andreas Krase, foram identificadas 1.570 fotografias, totalizando 1.720 com a inclusão de retratos e duplicatas. (KRASE, 1994, p. 159)
  • 6Panoramas eram pinturas ou fotografias de paisagens com uma vista extensa e sem interrupção do horizonte. No século XIX os panoramas fotográficos eram compostos de vários negativos com suas imagens montadas de forma sequenciada ou produzidos por câmera especial com negativos de até um metro de comprimento. (TURAZZI, 1995, p. 286)
  • 7É possível constatar que a foto foi tirada do ponto de vista da entrada do espaço expositivo a partir da análise comparativa com a planta baixa da sala (BERGT, 1906, s.p.)
  • 8Muito provavelmente essa peça foi produzida após sua morte, em 1904, a partir de sua máscara mortuária.
  • 9Utilizo europeu-africano a título de exemplificação, mas o assunto merece uma reflexão mais aprofundada pois, segundo Quijano o europeu identifica-se na oposição Ocidente/Oriente, indígenas do continente americano e negros do continente africano como primitivos (QUIJANO, 2005 p. 121).
  • 10Palavra de origem iorubana que significa cabeça. É no topo da cabeça, no ori, que se encontram o axé (energia vital) e a divindade / santo / orixá.
  • 11Ogã Sojatin: sacerdote responsável pelos cuidados das árvores sagradas. conhecedor das folhas.
  • 12Humpame de Jeje-Maí (em fom, Jeje Mahi): templo dedicado ao culto vodum, ( terreiro de candomblé de nação Jeje).