Na entrada do estacionamento transformado em espaço expositivo o visitante escuta batidas sincopadas, que o conduzem para o lado esquerdo do lugar. Ele segue e, ao cruzar uma estrutura — uma espécie de parede —, fica em dúvida se o que vê é um elemento expográfico ou um trabalho. Logo se depara com um monitor, fixado em uma parede preta, na posição vertical, e conclui, após ler a legenda, que a estrutura é: Vermelho como brasa, 2021, uma obra de Antonio Tarsis. Instalada ali, ela cria uma espécie de disfarce, acomodando o trabalho em vídeo, cujo som o atraiu até aquele canto.
O som parece ser produzido pelos passos de duas pessoas, e além deles não se escuta nenhum outro ruído no vídeo; soa como: 1-2-, pam; 1-2- pam; 1-2, pam; pam é o estalo provocado pelas suas pisadas no chão do salão. De aspecto solene, o lugar lhe parece familiar: ele vê dois jovens nus; são negros, têm cabelos curtos, loiros, no emblemático tom loiro pivete. Também usam correntes e brincos prateados, além de tênis da Nike (“these bitches want Nikes […] but the real ones”, ele pensa); pergunta-se por que aquele salão lhe é familiar. Ainda em frente à TV, encara os dois: é como se olhasse ao espelho; transmitidos naquela tela, têm quase o mesmo tamanho do visitante. 1-2, pam, eles giram, 1-2-, pam.
Alguns minutos se passam e, ao contrário dos performers, ele segue imóvel. A câmera que acompanha seus movimentos ora se aproxima, ora se afasta. A sequência acelera, a dupla gira, e o foco que antes estava nos pés parece agora envolver também outras partes de seus corpos. As cabeças se movem freneticamente, por cima dos ombros, pra frente e pra trás, como se estivessem em alerta. Quase tão rápidas quanto uma piscada, e como se fosse sempre necessário saber o que vem pela frente e o que os segue.
Um deles aparenta estar mais seguro com o novo encadeamento de passos. Ele morde os lábios, olha para seu companheiro e continua com a sequência, como se ela fosse tão natural quanto seu caminhar cotidiano. O que parece estar um pouco mais confuso desacelera. Levemente perdido na marcação dos passos, ele busca retomar a sintonia do início da coreografia; sorri, e seus olhares se encontram. É recíproco, sugerindo intimidade e confiança e apontando que, mesmo diante do iminente erro, aquela mirada funciona como um sinal de que qualquer deslize ou o passo em falso de um deles não impediria o seguimento da coreografia. Ela se reorganizaria; não seria um erro, mas sim um ensaio, um treino. Seguem: 1-2-, pam, 1-2- pam.
***
As linhas acima descrevem o encontro de um visitante com Repertório #2, de Davi Pontes e Wallace Ferreira ao visitar a 3° edição de Frestas – Trienal de Artes: O rio é uma serpente. Como o nome sugere, o trabalho faz parte de uma série que, através da repetição de gestos, passos e códigos compartilhados apenas entre os dois performers, cria um conjunto de movimentos, “uma tentativa de arquivar ações para elaborar resistências, conjurar modos de permanecer no mundo e inventar o que há de sucedê-lo”. A criação desse arquivo começa em 2018, com a concepção de Repertório #1. Diante da violência total autorizada pelo Estado e que historicamente assombra a vida da população negra e indígena no país, os artistas se perguntam: “como elaborar uma dança de autodefesa?”. Nessa busca, a dupla se empenha na criação de uma “partitura corporal em que dançar e viver possam ser sinônimos”, articulando um envolvimento com a dança de forma a proteger o corpo negro. Esse engajamento não é mera metáfora ou reprodução de práticas de defesa, mas sim o ponto de partida para a realização do trabalho, ou como André Lepecki menciona:
É importante frisar o ímpeto não metafórico. Coreografia não deve ser entendida como imagem, alegoria ou metáfora da política e do social. Ela é, antes de tudo, a matéria primeira, o conceito, que nomeia a matriz expressiva da função política (LEPECKI, 2012).
Mas se a violência tem uma lógica operacional muito própria, que uma vez engatilhada não responde aos limites estabelecidos por quem quer que a tenha evocado, dela tenha se aproximado ou sido vítima. Pensando com Jota Mombaça:
Ninguém passa incólume pela violência, e todas nós que fomos violentadas e injustiçadas ao longo da vida sabemos bem disso. A violência cria marcas, implica vidas, ela não é nunca um evento simples, é sempre complexa, multidimensional, e por isso requer cuidado (MOMBAÇA, 2021).
Como seria possível então elaborar uma dança de autodefesa, uma coreografia combativa ou instrumento de proteção sem reproduzir a violência e correr o risco de ser esmagado por ela?
As coreografias de Pontes e Ferreira projetam passos para escapar das armadilhas da representação da violência, por ousarem ser tão dinâmicas quanto a rapidez da brutalidade cotidiana e da velocidade de novas formas de controle e captura que se movem junto com eles. Não falam sobre a violência que os cerca, mas coreografam as linhas que os orientam para que consigam viver longe dela. Parte da estratégia (e do segredo) também recai na importância de uma dança que, além do caráter antimetafórico (LEPECKI, 2012), seja capaz de manter uma aposta no provisório, naquilo de efeito efêmero, e que seja apenas capaz de oferecer uma resposta, uma proteção para o agora, se atenta aos limites dos nossos corpos, lembrando que “autodefesa não é só sobre bater de volta, mas também sobre perceber os próprios limites e desenvolver táticas de fuga para quando fugir for necessário” (MOMBAÇA, 2021).
II
Em outubro de 2021, durante a minha participação no webinário organizado pelo MAC USP, em colaboração com a Getty Foundation, comecei minha apresentação com duas perguntas que orientam minha pesquisa:
- Como criar experimentos curatoriais em diálogo com obras de artistas cujas vidas estão profundamente ligadas à violência colonial sem contribuir para a captura e assimilação dessas práticas?
- Como articular a recusa como uma prática em constante negociação com políticas de visibilidade (representatividade), de forma a contribuir para um profundo desaprendizado das categorias coloniais nas instituições artísticas?
Quando enuncio essas perguntas, não busco exatamente resposta para elas, e sim desenvolver, como mencionei acima, uma série de experimentos curatoriais que criem territórios, mesmo que provisórios, em que haja espaço para o ensaio de possibilidades de criação artística capazes de mobilizar doses de recusa, despistar as coreografias do racial e projetar novas rotas para que habitemos um mundo não forjado na violência.
Durante o seminário, preocupado com a tarefa diante de mim, logo após enunciar minhas perguntas, fui tomado por um certo mal-estar — na verdade, um desconforto. Tentei seguir com a apresentação; contudo, já bastante insatisfeito com a minha própria dificuldade em elaborar uma fala que realmente conseguisse abordar experiências curatoriais que envolvessem artistas negr_s ou dissidentes ( inclusive o trabalho de Pontes e Wallace), sem deixar que o racial (ou qualquer outro marcador de diferença que estrutura nossas vidas) reencenasse cenas de violência colonial. Ou seja: meu receio era que, mesmo que de maneira simbólica, eu reificasse tudo o que combatia.
Algumas horas depois, com a sensação amarga de missão não realizada, me lembrei do ensaio “O desconforto e a imaginação: processos para estranhar e conjurar modos de saber” , da professora, pesquisadora e artista Cíntia Guedes, dividido em três momentos: o primeiro é uma breve introdução do texto, descrevendo como Guedes elabora sua prática pedagógica; na segunda parte, a autora descreve uma situação ocorrida no seu primeiro semestre de aulas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2020, e encerra o texto com um giro ficcional para um futuro distópico que espelha dias atuais — nele, estamos em 2039, e acompanhamos a própria Guedes revisitando um campus abandonado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em um Rio de Janeiro onde as milícias deixaram de ser um poder paralelo para assumirem o total controle do Estado:
O Rio de Janeiro se ergueu de forma estranha e agradável diante dela. Até mesmo o musgo verde que comia violentamente desde o chão até a metade das paredes lhe pareceu convidativo, uma imagem ruidosa que combinava perfeitamente com todas as cores do entorno. Os marrons de aspecto molhado das cascas das árvores. O cinza manchado dos paralelepípedos. Exceto por estar vestida de musgo, a Escola de Comunicação da UFRJ era como se lembrava: um prédio colonial de janelas largas e pouco capaz de esconder seus fantasmas.Tinha chegado na cidade dois dias antes e demorou nas horas se esforçando para acomodar a tristeza quando encontrou a cidade impregnada das guardas de aglomeração. A Guarda atuava na região metropolitana do Rio de Janeiro já fazia vinte anos, logo depois do fim da Polícia Militar. Era o braço do governo central na cidade, planejada para existir exclusivamente naquele território, como um laboratório do horror. (GUEDES, 2021).
É no segundo momento do texto de Guedes que ela narra uma situação em que uma de suas estudantes enuncia um desconforto durante a aula:
O debate girava em torno das posições ontoepistemológicas, logo perceptivas, dos corpos que partilhavam aquele encontro. O curso trata dos modos como a racialidade opera com e para um sistema visual e narrativo hegemônico na produção de imagens. Ela, uma jovem branca evidentemente comprometida com a literatura antirracista e atenta à produção artística negra, ainda assim e talvez justamente por isso, sentiu-se desconfortável, e com isso queria também nos dizer que estava em processo de escuta ativa (GUEDES, 2021).
Apesar de terem uma causa comum — o mundo como o conhecemos, fundado em violências — por razões óbvias, o meu desconforto durante o webinário não habitava o mesmo lugar que o incômodo sentido pela estudante. O que sentia era mais como um medo de sucumbir ao “sistema visual e narrativo hegemônico na produção de imagens” que me causou uma dificuldade em desenvolver uma fala que realmente pudesse articular o poder transformativo que trabalhos como Repertório #2 carregam. Ou seja: o obstáculo era exteriorizar o como que dá o tom das minhas inquietações e apresentar práticas artísticas sem aprisioná-las na velha gaveta da racialidade.
Ao abordar o desconforto como uma “forma de conhecer” ou “como uma fissura que desorganiza coreografias pré-estabelecidas” o texto de Guedes me conduziu entre as contradições que marcam nossa posição nesse circuito, e a ansiedade que sentimos ao perceber a dimensão do trabalho que temos pela frente.
O desconforto que senti ali foi, como escreve Guedes, um “processo de estranhamento, elaborado como início de uma fissura perceptiva que acontece nos melhores ‘encontros de de/formação’” e me alertou sobre a complexidade e o cuidado necessários para que sigamos com a nossa tarefa — ou seja, o fomento de práticas artísticas na reconfiguração do lugar que queremos habitar neste mundo.
Como mencionei acima, na última parte de seu ensaio, ao invés de descrever o exercício de escrita que ela propõe aos seus estudantes, lemos a própria tarefa. Assim, Guedes traz a imaginação não apenas como uma metáfora, mas como um método, o caminhar em si, para o redesenho do mundo. Da mesma maneira que Pontes e Ferreira, que, ao criar uma coreografia de autodefesa que não descreve ou mimetiza lutas, desenvolvem uma série de gestos com a promessa de que a prática e repetição daqueles movimentos sejam a realização de uma barreira de proteção para seus corpos. Dessa forma, os três possibilitam que eu me lembre que minhas indagações também podem operar como a própria prática de criação de uma relação entre um imaginário curatorial e um imaginário político que sustentem nossa presença nesse mundo, e contribuam para um trabalho continuado do que ainda há de vir.
Referências
GUEDES, Cintia. O desconforto e a imaginação: processos para estranhar e conjurar modos de saber. In: Afluentes publicação educativa da 3° edição de Frestas – Trienal de Artes: O rio é uma serpente. São Paulo: Sesc São Paulo, 2021.
LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Revista Ilha v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. (2011) 2012.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. In: Não vão nos matar agora. São Paulo: Editora Cobogó, 2021.