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Palavras em movimento: diálogos possíveis entre as artes literárias de autorias negras, a museologia e os museus

As ondas doces e salgadas das letras negras na pesquisa

Ao pensar o movimento das palavras da arte literária de autorias negras, é possível mirarmos ondas de letras criando imagens e nos possibilitando imaginar e (re)imaginar outras existências negras possíveis, contribuindo, assim, para a construção da inacabada obra do mundo. Palavras que se expandem como o mar, salgando as chagas para cicatrizar as desventuras, mas que, também, margeiam as matas como as águas caudalosas de um igarapé, adocicando o nosso viver. As prosas e as poesias de autorias negras, seguindo os cursos e os percursos das águas, apesar de encontrarem pedras pelo caminho, escoam possibilidades de uma constante reconstrução humana e humanizadora, num fluxo contínuo do eu para o nós e do nós para o eu.

A partir de leituras das obras (prosa e poesia) de autoras negras e autores negros, percebi a possibilidade de ampliar a reflexão no campo teórico e prático dos museus — independente da sua tipologia — e da Museologia, no tocante às representações dos corpos negros e das suas afromemórias nos espaços museais, mas não só. Concebo a arte literária de autorias negras como um fundamento epistêmico que nos oferta oferendas analíticas para refletirmos sobre o mundo, sobre o nosso tempo, sobre as sociedades nas quais estamos inseridas e inseridos e suas mazelas, sobre os nossos contextos políticos, assim como algo que nos instiga a criar novos processos de musealização e tirarmos dos escombros museológicos o que foi soterrado intencionalmente pelas dragas do racismo.

Desde 2020, venho tecendo teias dialógicas entre artes literárias de autorias negras e a Museologia, por meio do projeto de pesquisa “Memórias que vêm das palavras: olhares museológicos para as literaturas de mulheres negras”, no âmbito do curso de Museologia, na Faculdade de Artes Visuais (FAV), do Instituto de Ciências da Arte (ICA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), coordenado por mim (Luzia Gomes Ferreira), em parceria com o Projeto Museologia e literatura de mulheres negras: descolonização do olhar em arte decorativa, coordenado por Joseania Miranda Freitas, docente do Curso de Bacharelado em Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A fusão dessas duas pesquisas resultou no Projeto de Investigação Interinstitucional intitulado Tecendo teias: diálogos entre Museologia e literatura de mulheres negras. Nesta pesquisa, interessa-me apontar como as criações literárias de autorias negras constroem novos regimes de visibilidades e também plataformas de afromemórias, que podem ou não estar dentro dos museus; assim como abrir espaços para um diálogo horizontalizado entre a Museologia e as artes literárias de autorias negras.

Com a premissa de contribuir para novas reflexões sobre as memórias afrodiaspóricas na teoria e prática museológica, o Projeto de Pesquisa “Memórias que vêm das palavras: olhares museológicos para as literaturas de mulheres negras” analisou romances de escritoras negras brasileiras e estrangeiras; e foi possível constatar, a partir dessas escritas, como essas autoras escrevem sobre o povo negro afrodiaspórico: famílias; amores; amizades; política e tantos outros assuntos que vão além da denúncia do racismo. Como nos lembra a socióloga Patricia Hill Collins (2019, p. 12): “[…] Os governos mudam, mas a longa história de compromisso e criatividade das mulheres negras persiste nessa luta pela reivindicação de nossa humanidade plena”. Outrossim, as artes literárias de autorias negras se apresentam como um paradigma possível para se refletir sobre processos de musealização que busquem dialogar com os princípios das lutas antirracistas e antissexistas. A investigação foi dividida em três eixos, a saber:

1º Eixo – Escravidão negra: nesse eixo, analisamos obras literárias de escritoras negras que versam sobre a escravidão. Os livros selecionados foram:

Úrsula, de Maria Firmina dos Reis;

Água de barrela, de Eliana Alves Cruz;

Amada, de Toni Morrison;

O caminho de casa, de Yaa Gyasi;

Incidentes na vida de uma menina escrava, de Harriet Ann Jacobs;

Eu, Tituba: bruxa negra de Salem, de Maryse Condé.

2º Eixo – Infância negra: nesse eixo, estamos analisando obras literárias de escritoras negras, nas quais as crianças negras são protagonistas na trama. Os livros selecionados foram:

Meu mundo! eu, rio e Mar, de Mônica Conrado;

A cor da ternura, de Geni Guimarães;

Cartas para minha mãe, de Teresa Cárdenas;

O olho mais azul, de Toni Morrison.

3º Eixo – Mulheres negras em diáspora: nesse eixo, estamos analisando obras literárias de escritoras negras que versam sobre o deslocamento, especialmente o de mulheres negras. Os livros selecionados foram:

Cidadã de segunda classe, de Buchi Emecheta;

Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie;

Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida;

O ventre do Atlântico, de Fatou Diome;

Adua, de Igiaba Scego.

Este projeto de pesquisa se originou tanto do meu ofício de leitora de arte literária de autorias negras, conforme mencionei anteriormente, como das minhas experiências em sala de aula, com as turmas do curso de Bacharelado em Museologia da UFPA, nos componentes curriculares Teoria museológica e Musealização do patrimônio. Senti a necessidade de trazer para a sala de aula outros conhecimentos, para além dos cânones epistêmicos da Museologia, que ainda prevalecem majoritariamente brancos e eurocêntricos, e, na maioria das vezes, não dão conta de pensar criticamente as memórias negras nas Américas para além da escravidão com os seus objetos de tortura. Ao realizar os seminários com as turmas, nos quais lemos e debatemos livros de Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Fatou Diome, Yaa Gyasi e Toni Morrison, constatei ser possível apresentar às/aos discentes outras narrativas sobre o povo negro no continente americano, em que as pessoas negras são seres humanos, com nome e sobrenome, com suas complexidades, suas trajetórias, suas histórias, com os seus sonhos de liberdade e emancipação. E sempre frisava, para as alunas futuras museólogas e para os alunos futuros museólogos, a importância de elas e eles compreenderem que há outras referências para pensarmos as representações da população negra com dignidade e respeito em nossos museus. Conforme escreveu bell hooks (2013, p. 273): “[…] o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de possibilidade.” Os encontros e diálogos em sala de aula suscitaram questões que puderam ser aprofundadas na investigação. Considero importante registrar essa interligação entre ensino e pesquisa no universo acadêmico, pois muitas vezes parece que a pesquisa não se desdobra na sala de aula e vice-versa.

Sabemos da necessidade de construirmos coletivamente estratégias para desentranhar as colonialidades materializadas das estruturas museais. Nesse sentido, vislumbro que nossas pesquisas possam contribuir concretamente para que os museus se repensem, descolonizem-se e juntas/os consigamos criar propostas conjuntas de novos processos de musealização que sejam, de fato, antirracistas e antissexistas. Compreender as artes literárias de autorias negras como fonte de aprendizagens para a teoria e prática museológica não significa abandonar as fontes científicas, mas sim somar a elas outras produções de conhecimentos sem hierarquização. Por outro lado, é sempre importante lembrar que as instituições museais são criadas e geridas por pessoas. Logo, é preciso que as/os profissionais de museus criem um pacto antirracista e antissexista diante e a partir dos acervos, pois os objetos por si só não fazem transformação.

Construir a possibilidade das artes literárias de autorias negras como um dos referenciais teóricos no campo epistêmico da Museologia é importante para a reconfiguração da teoria e prática museológica contemporânea, principalmente em um momento em que se discutem as novas práticas e modos de fazer dos/nos museus. Não podemos pensar os museus do presente sem questionar os processos de musealização hegemônicos oriundos do colonialismo, nem esquecer que as instituições museais foram ferramentas coloniais. Tampouco podemos pensar a mudança dos museus sem a presença das escritas artísticas e científicas de pessoas negras e indígenas. A escritora Eliana Alves Cruz, em seu romance Água de barrela, convida-nos, logo em suas notas, a refletir sobre o que não queremos mais nas tramas das memórias do mundo. A prosadora narra:

Não queremos mais aquilo que embranquece a negra maneira de ser. Não queremos mais o lento e constante apagamento da cor da terra molhada, suada, encantada… Queremos os remendos dos panos, nas tramas dos anos sofridos, amados… E acima de tudo, apaixonadamente vividos. (CRUZ, 2018, p. 11).

No campo museológico, o debate sobre o direito à memória segue em curso. Contudo, precisamos pactuar quais são as outras/novas memórias negras que queremos apresentar e representar nos espaços museais considerados clássicos/tradicionais. Na atualidade, fala-se constantemente da descolonização dos museus; porém, geralmente não se questiona quais são os corpos que estão produzindo as teorias museológicas e realizando os processos de musealização nessas instituições oficiais de memórias. E, muitas vezes, reduz-se a problemática às representações dos corpos negros nos espaços expositivos, mas raramente falamos dos bastidores sistêmicos dos museus, de quem realmente detém o poder de mostrar e de esconder intencionalmente, e assim fazer com que algumas memórias sejam emergidas e outras imergidas. Na maior parte do tempo, é visível uma tentativa de adequar um pensamento pretensamente descolonizador a uma sociedade imersa em práticas coloniais, na qual sujeitas negras e sujeitos negros, na maioria das vezes, não são escutadas e escutados, apesar de muitas vezes estarem inseridos e inseridas na academia, nos museus, nas esferas políticas; ainda assim, quase sempre seguem sem possibilidades de nomeação e de presentificação. De acordo com bell hooks (2019, p. 32):

Sem uma forma de nomear a nossa dor, nós também não temos palavras para articular nosso prazer. De fato, uma tarefa fundamental dos pensadores negros críticos tem sido a luta para romper com os modelos hegemônicos de ver, pensar e ser que bloqueiam a nossa capacidade de nos vermos em outras perspectivas, nos imaginarmos, nos descrevermos e nos inventarmos de modos que sejam libertadores.

No tocante à pesquisa, apesar de a memória ser uma categoria importante para a teoria e prática museológica nos museus, não é de interesse dessa pesquisa enquadrar os trabalhos literários de autorias negras apenas como escritas memorialísticas. Por mais que algumas obras de escritoras estudadas em nossa investigação — a exemplo de Eliana Alves Cruz, Monica Conrado, Geni Guimarães, Toni Morrison e Maryse Condé — tragam à tona o passado materializado no presente, e as memórias interliguem essas escritas negras de alguma forma, fazendo-nos perceber que a memória é dinâmica e não se materializa apenas nos objetos bi e tridimensionais, ao entrarmos em contato com os romances dessas autoras, é perceptível que estes não podem ser reduzidos a um tratado das memórias negras nas Américas.

A poeta e romancista Miriam Alves, ao falar sobre as artes literárias de autorias negras, chama a atenção para compreendermos que essa escrita

[…] é uma literatura de várias e diversas narrativas. Não é uma narrativa de um lugar só… pode mas não é única de memorialismo, pode e não é única do ancestralismo, pode e não é única de a literatura de combate, pode e não é única a literatura de revolta, pode e não é única a narrativa de contra-ataque. (ALVES, 2019, p.xx).

Realizar uma pesquisa voltada para as artes literárias de autorias negras, especificamente de mulheres negras brasileiras e estrangeiras, é firmar a prosa e a poesia como fontes contemporâneas de saberes. É, também, uma forma política de elucidar a importância e a necessidade de descolonizar os olhares acadêmicos e museológicos, considerando, assim, novos referenciais para uma transformação profunda no ensino, na pesquisa e na extensão. As artes literárias de autorias negras são possibilidades poéticas concretas de contranarrativas imagéticas e históricas. Rosane Borges (2020) fala que “[…] é preciso fazer das imagens categorias de transformação” essas escritas negras são uma forma de reinscrição das nossas existências nas trilhas do tempo a partir das nossas subjetividades e coletividades. São a materialização da luta secular para existirmos num país violentamente racista como o Brasil, que nos mata imagética, simbólica e fisicamente. As artes literárias de autorias negras nos permitem ter uma pluralidade de imagens dos corpos negros no mundo a partir das palavras, pois as letras negras também são lugares de criação imagética e de imaginários possíveis na cena do mundo como ele é.

Do encantamento no alguidar de Ogum ao respirar da memória nos acontecimentos.

Ao organizar a minha apresentação –, sugeri para as/os webinaristas a leitura prévia de quatro textos literários dos autores Edimilson de Almeida Pereira e Jeferson Tenório e das autoras Miriam Alves e Roberta Tavares. Ao escutar as/os webinaristas após a minha apresentação na mesa Artistas negres, literatura e arte contemporânea, ao lado da professora Renata Felinto e do curador Thiago de Paula Souza, chamaram a minha atenção algumas referências aos textos dos escritores Edimilson de Almeida Pereira e Jeferson Tenório. Após o evento, em contato por e-mail com algumas/alguns webinaristas, decidi, na segunda parte deste artigo, tratar de dois textos que indiquei para o webinário.

Dos textos indicados para dialogar aqui, selecionei os dos escritores Edimilson de Almeida Pereira e Jeferson Tenório. Não são autores com os quais trabalho na pesquisa, pois, na investigação em curso, mencionada na primeira seção deste artigo, estudamos livros de escritoras negras. No entanto, sou leitora das obras desses dois literatos. Não pretendo fazer uma análise de crítica literária, pois essa não é a minha formação, nem profissão, mas sim fazer exercícios que considero importantes para pensarmos museus, memórias, a nossa sociedade e os objetos, a partir das artes literárias de autorias negras.

“As sobras dos afetos…”

Começo pelo livro O avesso da pele, publicado em 2020, de autoria do Jeferson Tenório, escritor carioca radicado no Rio Grande do Sul. Esse livro recebeu o Prêmio Jabuti 2021, na categoria Romance Literário. Para leitura das/os webinaristas, selecionei o subcapítulo 1, que faz parte do capítulo “A pele” e cujo narrador é Pedro, um filho em luto pela morte do seu pai, um homem negro, professor de literatura assassinado pela polícia. Ao falar do pai, Pedro também fala de si, e nessa trama visceral, que nos prende do início ao fim enquanto leitoras e leitores, as mazelas raciais da sociedade brasileira estão colocadas. Contudo, como a arte literária nos possibilita olhar e ver para além do que é concreto aos olhos, nas frestas das letras de O avesso da pele é possível encontrar fios condutores para entendermos como as coisas/objetos nos atravessam no tempo de hoje, rememorando o ontem.

Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te espero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar. (TENÓRIO, 2020, p. 13).

Quantas coisas/objetos nos museus nos agridem? Mas, ao mesmo tempo, quantas coisas/objetos nos museus podem nos possibilitar suportar as tragédias cotidianas enquanto população negra? Será que é possível? Leio e escuto Pedro pensando em quantas vezes nas instituições museais vemos/tratamos as coisas/objetos a partir da sua materialidade, nos ocupamos da sua durabilidade a partir das técnicas de conservação, fazemos seus registros nas fichas de documentação, até exibi-los numa exposição. Será que já conseguimos ver/perceber os acervos como coisas/objetos que carregam pedaços de gente, desde a sua criação, execução, usos e reusos pelas pessoas vivas e de como elas nos conectam às pessoas do nosso passado?

Sabemos que nem tudo está e nem estará nos museus, pois não fugimos da seleção nas constituições dos acervos. Porém, para compreendermos as materialidades das memórias negras em constante movimento no Brasil, também precisamos olhar para fora dos espaços museais. Muitas vezes, os fragmentos das nossas memórias estão num canto de algum lugar, na efervescência da encruzilhada, na oferenda em um cemitério, na cumeeira de um terreiro, ou em um alguidar de barro atrás da porta, como Pedro nos apresenta:

Mas como um percurso que vasculhe o ambiente e dê início a um quebra-cabeça, um quebra-cabeça que começa atrás da porta da sala, onde encontro um alguidar de argila alaranjada. E, dentro dele, uma pedra, um ocutá, enrolada em guias de cores vermelhas, verdes e brancas, um orixá. Observo-a com cuidado. É assim que se adentra numa vida que já se foi. Tiro o ocutá do alguidar. Lembro o dia em que você me disse que sua cabeça era de Ogum, e que isso era ter sorte, porque Ogum era o único orixá que sabia lidar com os abismos. Lembro que foi de sua boca que escutei pela primeira vez a palavra “abismo”. Há palavras que guardamos na infância porque nos confortam. (TENÓRIO, 2020, p. 14).

Desde que passamos a existir e habitar forçadamente nessas Américas inventadas pelo colonialismo, estamos à beira e dentro do abismo. Ogum, materializado no ocutá ou na matéria humana, nos auxilia a driblar abismos e, quando muitas vezes não conseguimos sair dele, Ogum está lá no front, nos apontando caminhos de luta e de recuo para proteção. Mas também gosto de ver Ogum como pai amoroso, que abraça, acolhe e deixa seguir, como neste caso da sonhadora:

[…] caminhos fecham-se em deslocamentos com nuvens cinzas… o sol parece não pode ultrapassar as vias estranhas nos tempos de trevas… enquanto o céu não se abre ao ano novo… um corpo dolorido na sarjeta da terra rasteja pelas esquinas em busca de aconchego nos braços do invisível… tomada pelo cansaço dos sete equívocos humanos a matéria física adormece na encruzilhada da desesperança… inconsciente no flagelo do sono, o pedaço de carne humana descartado na rua do desamparo revive a sua memória ancestral numa festa de terreiro… no xirê, ela avista Ogum pisando no Àiyé, rasgando o asfalto e as linhas de ferro, dançando com a sua espada tecnológica de consolo amoroso… como pai que não abandona sua filha em períodos de janeiros, Ogum a abraça e dança com aquele corpo rejeitado pelos vinte e um olhos do descaso…nesse instante de contemplação do abraço de amparo a sonhadora tem a certeza que Ogum comeu iame assado com dendê e feijoada na estrada do Axé!…(GOMES, 2020)

Voltando à narrativa de Pedro, ele encerra esse subcapítulo nos informando que é através das coisas/objetos que a trajetória e memória da vida do pai dele será reconstituída. Mesmo que essas coisas/objetos possam se tornar um fantasma visitante:

Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora contam sobre você. Os objetos serão o teu fantasma a me visitar. (TENÓRIO, 2020, p. 14)

Lendo e escutando Pedro, concebo a possibilidade de construirmos novas teorias sobre as coisas/objetos a partir das artes literárias de autorias negras, e não só. Não a teoria de apaziguamento, mas a do confronto. Precisamos nomear as coisas/objetos que nos assombram nos museus, os fantasmas que seguem vivos em acervos que não são escutados. E talvez assim, em algum momento, possamos enxergar nessas coisas/objetos as sobras dos afetos que nos fazem suportar as tragédias seculares nessas Américas.

“Um lugar para os vivos, mesmo que mortos”

O livro FRONT, do professor e poeta mineiro Edimilson de Almeida Pereira, foi publicado em 2020 e, em 2021, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura. Este livro faz parte de uma trilogia composta por mais dois livros: O ausente e Um corpo à deriva. FRONT nos apresenta a narrativa de um homem dos escombros, do monturo de uma cidade grande, cidade essa que existe em cada capital desse país. Não sei o nome desse homem, não vejo o seu rosto, mas sei quem ele é. Porque ele está presente nas esquinas, nos lixões, na invisibilidade visível dos nossos centros urbanos. No capítulo 13 do livro, esse homem sem rosto, sem nome, esse homem-árvore, visita o museu criado pelo personagem Jean-Charles:

‘Aqui é uma casa onde a memória respira e aceita discutir os acontecimentos’. (…) Enquanto discorria sobre o espírito do Museu, passeei os olhos lendo a ventura e a desventura dos objetos. Alguns eram sobras da repressão: um tênis ao invés do par, uma carteira sem os documentos, um fone de ouvido divorciado da música. Para Jean-Charles os objetos não eram apenas o resultado da violência sobre os corpos felizes. Eram um sinal de orfandade de quem agredia e de quem saltava o abismo para se salvar. (PEREIRA, 2020, p. 93).

As sobras e o abismo mais uma vez se destacam, porém, gosto de pensar nesse museu no qual a memória pode respirar, porque às vezes a deixamos sem leveza, sem um minuto de suspiro. Também considero importante que os espaços museais travem discussões acerca dos acontecimentos, sem amenização, apesar de não saber se é possível e se já conseguimos fazer isso sem nos escondermos atrás dos acervos. Quais são as venturas e desventuras das coisas/objetos que compõem os acervos dos nossos museus? Ao visualizar na minha imaginação o museu criado por Jean-Charles, não imagino um lugar que me deixaria confortável após a visita.

Você percebe’, insistia Jean-Charles, enquanto me apontava os objetos, ‘aqui não é um lugar para frases feitas do tipo: às vezes somos salvos pelo acaso, não dizer nada é dizer tudo. Não. Aqui é um lugar para os vivos, mesmo que mortos. Isso é intenso e não cabe nos catálogos dos museus convencionais. Aqui os objetos despedaçados, quase invisíveis, evidenciam que somos uma constelação. Que podemos esticar a alma ao máximo e, perto do limite, soltá-la.’ (PEREIRA, 2020, p. 93-94).

Apesar do desconforto que o Museu de Jean-Charles me causa, é marcante pensar como os mortos vivem a partir das coisas/objetos despedaçados, porque esses mortos são os não lembrados, os corpos dos indesejáveis, os terrivelmente outros, conforme fala a Rosane Borges. A crítica aos museus convencionais está posta; contudo, também penso que qualquer museu nos pertence. Mas a chave precisa ser virada, as narrativas museológicas precisam acompanhar os acontecimentos que secularmente tentaram soterrar no calabouço do esquecimento.

Jean-Charles tem razão: o seu Museu é a derrota de certas memórias que nos encarceram. Reunida e soprada nesse Museu, a vida não é uma senha para o esquecimento. No Museu de Jean-Charles o que viveu dança pelas ideias que trazem em si. (…) O que você esperava de um ser vivo que, por acaso, chamamos de Museu? Se você tocar esse ou aquele vestígio, pelo menos aqui, terá de lidar com as suas vísceras. Tudo é absolutamente fértil por aqui. (PEREIRA, 2020, p. 96).

Aqui há uma guinada interessante. O Museu de Jean-Charles, ao derrotar as memórias encarcerantes, humaniza os terrivelmente outros. As vísceras expostas dos vestígios nos convocam a lidar com os traumas sociais e coletivos e, quem sabe, encontrar um caminho de cura. Mas se a cura não for possível, as feridas e as cicatrizes não serão ocultadas nas reservas técnicas dos museus. No Museu de Jean-Charles não há espaço para uma fruição do contentamento e da beleza; a violência está lá, apresentada, sem rodeios, nos objetos apartados das pessoas a quem pertenciam. Mas ao mesmo tempo, o homem do escombro, sem rosto, sem nome, juntamente com Jean-Charles, nos lembra que eles também têm histórias para contar, que eles sabem quem são os donos do “esquema”, que eles têm direito ao registro das suas memórias, que eles também têm direito à vida.

Pausando as letras

As artes literárias de autorias negras e os museus seguem em movimento. Porém, nem sempre se encontram e dialogam. Por isso, o meu exercício nesse texto, a partir da pesquisa que venho realizando e do meu ofício de leitora e poeta, foi tentar construir esse diálogo, de uma forma que a escrita literária não seja uma coadjuvante para os museus e nem para a Museologia, mas sim uma protagonista com autonomia, que desvela e revela outros caminhos para pensarmos as coisas/objetos, as memórias afrodiaspóricas, a vida, as nossas existências e tudo o mais que nos torna demasiadamente humanas e humanos.

Algo importante de pontuar quando trato das instituições museais e das artes literárias de autorias negras é que nenhuma resolverá todos os problemas sociais, incluindo o racismo, que dilaceram as vidas do povo negro no Brasil e nas Américas como um todo. Porém, considero que são lugares (concebo a prosa e a poesia como lugares de inscrição no mundo) que podem contribuir para a construção de novas imagens e imaginários emancipatórios da e para a população negra.

Por fim, faço votos de que todo e qualquer museu brasileiro, independentemente da sua tipologia, tenha como um dos princípios da sua missão ser uma instituição antirracista. Que encontrem caminhos para comunicar aos seus públicos que a população negra não prestou apenas uma “contribuição” para a formação do Brasil, e sim que nós somos a sociedade brasileira. E que não reduzam as nossas histórias e memórias nas Américas à escravidão.

Referências

ALVES, Miriam. Entrevista no Canal do Youtube Bondelê. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W–oD2cL_tg. Acesso em: 20 jan. 2022.

COLLINS, Patricia H. Pensamento Feminista Negro: Conhecimento, Consciência e Política do Empoderamento. Trad. de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.

CRUZ, Eliana A. Água de Barrela. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2018.

GOMES, Luzia. A Sonhadora. In: Etnografias Poéticas de Mim. 2020. Disponível em: https://etnografiasdemim.blogspot.com/search?q=a+sonhadora. Acesso em: 20 jan. 2022.

HOOKS, bell. Olhares Negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

HOOKS, bell. Ensinando a Transgredir: a Educação como Prática de Liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

PEREIRA, Edimilson de A. FRONT. São Paulo: Editora Nós, 2020. TENÓRIO, Jeferson. O Avesso da Pele. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

  • 1Este projeto interinstitucional é coordenado por mim e pela Profa. Dra. Joseania Miranda Freitas (UFBA).
  • 2Anotações da autora durante o curso virtual Representação, Imaginário e Imagens de Mulheres Negras, ministrado pela Profa. Dra. Rosane Borges, no Centro Cultural b_arco em 2020.