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Relatos de estudantes

Corpos negros em trânsito: relato do webinário

O webinário MAC USP Processos curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas foi realizado entre os dias 4 e 7 de outubro de 2021. Os encontros propuseram apresentar temas pertinentes às discussões contemporâneas do campo curatorial, por meio dos diversos pensamentos. Entre os convidados, no primeiro dia, tivemos a presença de Thomas Cummins, Angelica Sanchez e Mônica Cardim; no segundo dia, Renata Felinto, Thiago de Paula Souza e Luzia Gomes; no terceiro dia, Kleber Amancio, Renata Bittencourt e Kimberly Cleveland; no quarto e último dia, os curadores Claudinei Roberto da Silva, Diane Lima e Igor Simões expuseram suas falas e exibiram trabalhos realizados. O webinário foi encerrado com um debate entre grupos, com participantes e painelistas discutindo sobre as abordagens.

No primeiro dia de trabalhos, 5 de outubro, Thomas Cummins, pesquisador e professor da Universidade de Harvard, expôs sobre o retrato de Andrés Sánchez Galque, intitulado Portrait of Don Francisco de Arobe and Sons Pedro and Domingo e datado de 1599, no qual o líder político da costa de Esmeraldas, no Equador, pousa ao lado de seus filhos, descendente de escravizado e mãe nicaraguense. Tal quadro esteve em exibição na mostra “Tornaviaje. Arte iberoamericano en España” em cartaz até fevereiro de 2022 no Museu do Prado, em Madri, segundo o site da instituição.

Cummins compartilhou, também, informações sobre oposições políticas do país quanto à realização da exposição da artista peruana Sandra Gamarra, Buen Gobierno. O governo espanhol censurou o uso de termos como “racismo” e “restituição” em textos da mostra. Segundo o professor, a intenção dos governantes era combater essa “onda negra” que ocorre nas instituições do país, destacando a obra de pinturas de espanhóis na América, em contraponto. Tal exemplo expressivo e magnânimo desta produção, de acordo com Cummins, esbarra na promoção de termos como fascismo e nazismo: alguns deles associados, inclusive, à criação de museus e instituições espanholas à época dos regimes opressores. “O que está acontecendo na Espanha é uma limpeza”, enfatizou o pesquisador em uma de suas falas.

Na continuação da programação desse mesmo dia, Angelica Sanchez, pesquisadora que realiza estudos nos quais analisa a representação da população negra, abordou sobre a cultura visual, com foco na questão de gênero e racismo estrutural. Sob o tema Espejos De- construídos: Historia Natural, Interseccionalidad y Arte Contemporáneo en Brasil y Colombia, Sanchez centrou sua fala na teoria do Racismo Científico, que tem expoentes como Louis Agassiz, apresentando o trabalho artístico e a pesquisa de algumas artistas que buscam uma crítica aos escritos aqui mencionados.

Agassiz tinha um compromisso científico e criacionista, produzindo, entre outros, imagens de escravizados nos Estados Unidos que ficaram conhecidas em todo o mundo pelo teor racista. Uma das artistas mencionadas pela pesquisadora, Rosana Paulino constrói um trabalho contundente de crítica a essas imagens. Segundo Sanchez, a artista fala, por meio de suas obras, de que forma as mulheres negras eram retratadas na época em séries como Assentamento. Essas imagens desumanizantes são refeitas, repensadas e reconstruídas com ferramentas utilizadas pela artista, que também é pesquisadora e foi uma das organizadoras deste webinário no MAC USP. Diante dessas discussões, Angelica Sanchez nos indaga: como podemos responder a essa construção racista? As obras apresentadas tentam responder a isso?

Na mesma envergadura, fechando o primeiro dia de encontros, Mônica Cardim, pesquisadora e fotógrafa, trouxe suas pesquisas sobre a representação de pessoas negras em retratos fotográficos do alemão Alberto Henschel. Para Cardim, homens e mulheres teriam suas imagens relacionados a um processo de inferioridade, como nos registros produzidos por Henschel, que seriam “melhoradas” pelos processos de escravidão. Em suas leituras, Cardim olha para a materialidade e o contexto em que as fotografias de Henschel foram apresentadas, relacionando aos estudos de colonialidade defendidos por Aníbal Quijano.

Para o segundo dia do webinário, em 6 de outubro, Renata Felinto, pesquisadora, artista, curadora e professora da Universidade Regional do Cariri, trouxe o tema “As artes visuais como lugar íntimo da edificação de sonhos e da destruição dos pesadelos”. A partir do aspecto de artistas que articulam heranças para uma vivência e um “anti-holocausto” das famílias diaspóricas no Brasil, no qual as questões de sobrevivência diária esbarram no fazer artístico, a pesquisadora abordou essa dinâmica em exemplos de algumas artistas mulheres negras. A pernambucana Ana das Carrancas produziu objetos autônomos, no qual figuras antropozoomorfas surgem em feições exageradas, em diálogo, mesmo que distante geográfica e temporalmente, com uma produção que ocorre na África Ocidental. Exibidas e postas em cima de móveis, muitas vezes, suas obras aparecem em objetos do dia a dia, como louças e panelas. Mesmo que mencionada como uma artista popular, numa tentativa de diminuição de seu trabalho, as produções de Ana das Carrancas foram publicadas em jornais que despertaram o interesse da crítica especializada.

Felinto continuou sua fala ancorada na artista Madalena dos Santos Reinbolt, que tem uma rica produção em tapeçaria que despertou, recentemente, o olhar de instituições como do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP, que adquiriu um de seus trabalhos. A pesquisadora concluiu com as obras de Raquel Trindade, levantando discussões sobre mulheres negras nesse lugar de artistas polímeras, ou seja, mulheres negras que incorporavam uma série de talentos e habilidades. Esse repertório apreendido por diversas áreas personifica, por sua vez, conceitos como empoderamento e pertencimento. Para Felinto, as três artistas se autorizaram a tentar viver de arte, mesmo pela pouca inclusão desses trabalhos dm exposições dos grandes circuitos.

Na continuação do mesmo dia, Thiago de Paula Souza, curador e pesquisador, nos apresentou a mostra da Frestas Trienal de Artes do Sesc Sorocaba, exposição que assina a curadoria ao lado de Beatriz Lemos e Diane Lima. Com base em uma indagação que propõe discutir as relações, entre outros, de obras e histórias de vida de artistas cujo corpos estão ligados às violências coloniais, o curador mostrou alguns caminhos trazidos em Frestas a partir de trabalhos artísticos que compõem a exposição.

No encerramento do mesmo dia, Luzia Gomes, pesquisadora e professora, abordou sobre a prática decolonial na perspectiva da museologia. Tendo a palavra como eixo de sua fala, Gomes trouxe criações literárias em diálogo com a teoria e prática museológica, sendo o próprio museu um espaço colonial no cerne de sua formação.

No terceiro dia de webinário, em 7 de outubro, Kléber Amâncio, pesquisador, propôs uma nova leitura da obra A Negra (1923), de Tarsila do Amaral. Amâncio nos apresentou o conceito de “Arte branco-brasileira”, realizando esse estudo de caso a partir da leitura de imagem de um documento visual, no caso a pintura modernista. Em seu ensaio, o pesquisador exibiu outras produções nas quais o negro foi representado sob o olhar do artista branco.

Com a pergunta “Rubem Valentim era um afro-futurista?”, Kimberly Cleveland, pesquisadora, nos indagou sobre a produção do artista título do painel, abordando uma nova visão da produção de Valentim. Questões oportunas no que concerne o aspecto concretista da produção do artista, a estética e os temas levantados por ele estiveram entre as discussões.

No mesmo caminho percorrido neste dia de evento, Renata Bittencourt, pesquisadora e gestora cultural, realizou uma leitura da obra de Jacob Lawrence, A Aula, de 1946, que faz parte da coleção do MAC USP. O trabalho propõe uma experimentação dos temas em ênfase na cultura afro-americana, como o jazz, por exemplo, a partir da representação de espaços de educação e leitura, as bibliotecas, onde o negro estadunidense estivesse inserido. Bittencourt continuou sua fala por outras obras do artista, movida pelas expressões estéticas e semânticas dessa produção.

Como forma de encerramento do seminário, no dia 8 de outubro de 2021, fomos contemplados pelas apresentações da curadora Diane Lima e dos curadores Claudinei Roberto da Silva e Igor Simões, que estiveram imersos no acervo do MAC USP durante as semanas anteriores, e também nos dias em que o evento ocorreu. Os curadores elencaram algumas obras que foram examinadas, ao ponto que conhecemos mais sobre seus trabalhos de pesquisa e curadoria realizados.

Na sequência, os debates foram propostos entre os grupos. Após as discussões, o autor deste relatório anotou algumas percepções. Entre as falas, um ponto de confluência dos temas trazidos pelos painelistas foi a perspectiva de uma presença de corpos negros em diferentes trânsitos. Desde as obras do acervo do MAC de artistas negros, passando pelo crivo de uma arte de autoria branca responsável pela formulação da “imagem” do negro durante séculos, até os espaços no qual esses mesmos corpos ocupam, em propostas como a deste seminário, em lugares institucionais de fala, decisão e poder, tendo a curadoria uma chave de elo entre essas consoantes, é possível outras formas de pensar essas visualidades?

Das subjetividades de cada artista, curador, pesquisador, frente à pluralidade de narrativas, como a curadoria pode ser um espaço para comunicar uma ideia, um instrumento, e questionar o que é discutido tradicionalmente em constante chamado para balançar a estrutura, como citou Angelica Sanchez? E mais, como fazer isso sem necessariamente hierarquizar essas falas? Nesse sentido, pensar em aquilombamento foi um dos caminhos a ser percorrido. Entretanto, aquilombar para além do eixo Rio-São Paulo se faz necessário. Propor, idealmente, novos locais de produção e circulação de pensamentos são temas caros a todas e todos nós. Que essas discussões também possam borrar as fronteiras desses espaços ainda tão limitantes.