Desejo ir em alto-mar, desfazer amarras do que não sou. Dançar baião com cardumes furta-cor, incapturáveis. Nadadores fugidos das histórias des-contadas. Guardadores dos contos sobre exploração da carne, reconstrutores de si e de mundos perdidos. Desejo chegar ao chão escuro das profundezas oceânicas, desnuda ao lado de Wallace e David, no Repertório ainda não contado. Círculo pelada, ácrona, de futuro e passado. Desejo ser suor interpelante, de nudez exuzíaca e bela. Para que no breu fluoresça a melanina da pele amefricana. Seus tons cintilantes e escamados de verde e lilás.
No cardume não há opostos… é sempre movimento. Refazimento de si e das águas envolventes. Sua malemolência esquiva das predações evolucionistas, presunçossas fotografias oitocentistas, tipos negros, paisagens tropicais, escravidão, belas vistas. Minha remada é ginga desconhecida dos pseudocientistas. Sobrevive no caminhar conjunto dos múltiplos eus. Não andamos sós. No cardume eu cuido de ti, sou contigo e coreografamos o canto umuntu ngumuntu ngabantu para entrar na correnteza.
Depois que o perigo passa, vamos em todas as direções, mostrando cada qual uma beleza sem igual. Ficam as cerâmicas autônomas de Ana das Carrancas, longe das proas, exibindo parceria e comunhão. Daí que vem a verdadeira curadoria: dos barros de Nanã, das amas de leite nannies, dos corais sincréticos de Sant’Anas. Ela vem das sobre-vidas e da plenitude das trocas.
Mas a humanidade está doente. Descuidada de sua natureza. Esquecida de sentir: comer, cheirar, tocar, ver e ouvir o que de fato importa. “From here I saw what happened and I cry. I saw they looking at me. I saw they prayed far from home. I saw a scar under tree. I saw a bird sing alone”.
Será possível refazer o trajeto de quem pousou neste quintal? Descobrir os nomes ausêntes naquele óleo sobre tela emoldurada? Migrar rumo ao Sul, na contramão do sistêmico furacão colonial? Será possível chegar às alturas, pelas teias de Ananse e lá ouvir histórias de cura e liberdade compartilhada, descondicionada da exploração do outro-eu? Ultrapassar os muros privados, cercados institucionais, formações segregatórias, isolamentos pandêmicos e lógicas capitais? Reconhecer a dimensão oral das ciências, os saberes que passam pela convivência? Mesmo sem registros formais, o diálogo é fonte da água forte, rica e permissiva. Basta abrir os ouvidos para ouvir. Mas quem não arrisca se molhar não percebe que dá pé nadar além da Ilha das Convenções.
Vale cuidar para não cair em mundos perfeitos, candidaturas mitológicas… ilusões. “Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que arremessou hoje”. As distopias de agora germinaram do plantio das utopias. Autocrítica é um exercício sem fim, e amanhã ainda restarão ramos pra podar, memórias pra curar. Nesse mundo não existe pureza de sangue ou ideal. A natureza é múltipla. Muitas sementes acordarão para celebrar as diferenças na cor das pétalas e no sabor das frutas. As idealizações fogem das demandas diárias, do inverno-verão, do arroz com feijão, sede rasgada, secura do chão, do presidente alheio ao preço do pão. O amor perfeito massacra a linha das rugas, o brilho grisalho dos fios e os prazeres de viver assim. O jovem modelo, padrão de beleza, está sem likes porque o tempo das narrativas hegemônicascustou caro, e ainda estamos a pagar.
No caminho da universidade, uma nova geração retinta ouve o hit “I can’t breathe”. Ela lê, produz, defende, consome, faz ruído e faz o ruído crescer em frente à placa “silêncio” da galeria, nos Jardins. Ela produz mais porque não espera “as galerias e as casas de show se abrir”. Ela pixa, lambe, faz meme, passinho, rolezinho e pergunta aos delegados: “Quem mandou matar Marielle?”. Ela pinta de preto o papel pardo e navega fora das exposições temáticas de novembro, porque não dá para tirar onda de ser preto um dia e branco no outro. Ela voa nas asas do guira-una e nada no cardume filosófico do Sul-Global, para falar mais do azul do que sobre tudo aquilo que não me deixam esquecer.
Agora, para falar dessas coisas… sobe… toma ar …
Para falar das cicatrizes e feridas abertas, ainda ardidas e sedentas de cura-dores, é preciso mirar mais fundo. Perfurar a imensidão azul, lembrar dos descuidos, sucateamentos, negligências, incêndios de nossas memórias e políticas de morte. Cuidar das cinzas, enxergar o sangue, o suor e queimaduras na pele. Reconhecer o déficit de representação dos corpos das mulheres, dos negros e dos indígenas nas cadeiras de decisão. Precisamos de curandeiras sabidas de apreciar sem explorar. De corpos nadantes, vissungos do canto das baleias para articular intersecções, dar conta de correntes cruzadas, ancestrais e invisibilizadas. Pensar novos repertórios de arquivos-tesouro a partir dos silêncios e lacunas históricas. O reflexo de muitos rostos ainda é turvo nos museus.
Novos mergulhos podem girar o sentido dos vetores de costume. Ir da faculdade para a Educação Infantil, até crianças de pés descalços que nunca viram o mar. Dar respiro para criatividades permissivas, conhecimentos comunitários, experiências particulares e potências inerentes. Viver interações inesperadas, em que a sauna pode ser lésbica e as emoções são bem-vindas, porque lágrima é “cura que já vem com sal”.
A tal contemporaneidade diluiu linearidades em redes-tarrafa policentradas. Necessitamos buscar “la revelación de fuerzas que nos ligan / Se mezclan semillas de diversidad / Y la cosecha aclara todo lo que importa / Aclarate con la oscuridad”. Tornar o museu um lugar mais plural: reflexo e casa do nosso povo.
As respostas não vêm fechadas. A convivência gera arranjos. No mar-alto, a constelação é de outra ordem. E, para entender a altura das ondas que estão por vir, é preciso cruzar a “Linha de arrebentação”:
“Fazer um poema que desarrume a própria cabeleira
e quebre nas nossas cabeças
como uma boa
arrebentaçãode só restar areia espuma
e sal entre os dentes
gastos.E não diga que não avisei:
poesia é mar fundo, praia
de tombo”. (CÔRTES, 2020)
Aqui, descanso um pouco. Numa costeira de areia fina, trazida das ondas, sem caminhos prontos ou limites demarcados…
e onde não há ponto final
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