“Os artistas avançam. Mas onde está a crítica de arte? Onde estão os novos curadores? Onde estão os novos historiadores que poderão discutir essas novas narrativas e realmente fundamentá-las?”
Rosana Paulino
Fomos convidados a refletir sobre a arte afrodiaspórica das Américas, ligando a história da arte a estudos decoloniais. Esse convite e a citação acima – enunciada no início do seminário “Curadoria e Estudos Decoloniais em Artes Visuais”, pela artista e pesquisadora Rosana Paulino, ressoam os apelos relativamente recentes para descolonizar a história da arte e os museus de arte pelo mundo. Uma reflexão desse tipo não é novidade na América Latina. Para refletir sobre essas questões, devemos primeiro reconhecer e adicionar às contribuições de pesquisadores negros de gerações anteriores. Aqui, foco em alguns casos discutidos no seminário e alguns outros do Peru (o país que conheço melhor) para afirmar que pesquisadores negros têm contribuído consistentemente para o discurso da arte latino-americana. Meu argumento é duplo. Por um lado, ressalto como diversos pesquisadores negros foram essenciais na historicização das artes afro-latino-americanas apesar de serem historicamente negligenciados pela historiografia e por instituições de arte tradicionais. Por outro lado, destaco como suas pesquisas e métodos educacionais foram além das concepções limitantes de bolsas de arte de uma forma que retrospectivamente podemos chamar de “decolonial”.
No campo da história da arte, o termo “decolonial” é, atualmente, usado como um arcabouço teórico que desafia narrativas eurocêntricas e instituições culturais em países anteriormente colonizados ou colonizadores. Historicamente, e mais do que outras disciplinas acadêmicas nascidas na Europa, a história da arte baseou sua ordenação, taxonomização e valorização da produção cultural de diversos povos a partir de um gosto estético eurocêntrico. Questões de “alta” e “baixa” cultura são particularmente intrincadas na América Latina – uma região onde elites brancas e mestiças modernas desenvolveram uma definição culturalista de raça que legitima sentimentos racistas ao apelar para noções eurocêntricas de moralidade, educação e gosto. Diante desse contexto complexo, o seminário do MAC USP perguntou: Como podemos descolonizar uma disciplina historicamente fundamentada no viés cultural e no racismo?
Longe de apenas criticar a disciplina, os palestrantes do seminário apresentaram estratégias curatoriais e historiográficas para apresentar a arte negra de maneiras não eurocêntricas. Igor Simões apresentou montagens descentralizadoras e não convencionais de obras de arte para desafiar narrativas dominantes. Comparar no espaço da galeria a escultura “Unidade Tripartida” do artista concretista suíço Max Bill com a pintura “Moenda” do artista negro brasileiro Heitor dos Prazeres (ambas exibidas em São Paulo em 1951), por exemplo, muda o foco de uma genealogia da abstração geométrica para um reflexo da cultura bienal de meados do século. Luiza Gomes, por sua vez, propôs partir de conceitos relevantes para escritoras e plateias negras. Como exemplo, uma exposição que destaque as ideias da poeta brasileira Geni Guimarães e da romancista norte-americana Toni Morrison sobre infância negra pode ajudar o público a se conectar com os objetos da galeria. Renata Felinto explorou histórias alternativas também a partir das experiências de mulheres negras – a ceramista Ana das Carrancas, a pintora Madalena dos Santos Reibolt e a coreógrafa Raquel Trindade. Ao focar na vida privada e social afetiva de artistas excluídos de galerias de arte e discursos convencionais, Felinto postulou uma rede de arte moderna que desafia a divisão entre as belas artes e as chamadas artes populares.
No geral, a apresentação de Felinto levantou questões sobre redes de conexão de pessoas negras em sociabilidade e produção de conhecimento. Nesse sentido, Kleber Amancio observou que pesquisadores negros começaram a narrar artes afrodiaspóricas no início do século XX. Ele mencionou o artista e escritor Manuel Raimundo Querino (1851-1923), que publicou Artes na Bahia e Artistas Baianos em 1909, e o curador Emanoel Araújo, que fundou em 2004 o Museo Afro Brasil. Mas publicações e exposições não foram as únicas estratégias que os artistas negros implantaram. Em 1944, o escritor e artista plástico Abdias Nascimento (1914-2011) fundou o Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro. Além de formar artistas negros de setores de baixa renda, o Teatro destacou o patrimônio cultural afro-brasileiro para o público local; a partir daí, Nascimento concebeu o Museu de Arte Negra em 1950. O poeta Solano Trindade (1908-1974) e a coreógrafa Maria Margarida da Trindade criaram o Teatro Popular Brasileiro no Rio de Janeiro em 1950, formado por um grupo que recuperava danças afrodiaspóricas para apresentações públicas. A filha do casal, Raquel Trindade (1937-2018, mencionada acima), fundou o Teatro Popular Solano Trindade em 1975 – espaço que até hoje funciona como centro cultural e de pesquisa em São Paulo. Esses projetos variados revelam como, para além da história da arte e dos museus de arte convencionais, artistas negros se encarregaram de pesquisar e divulgar o patrimônio cultural afro-brasileiro: muitas vezes através da escrita, embora não exclusivamente.
Pesquisas e centros educacionais conduzidos por pessoas negras existiam em outras partes das Américas. Em 1958, o músico e folclorista peruano Nicomedes Santa Cruz (1925-1992) criou em Lima o Conjunto Cumana, um conjunto musical de pessoas negras que recriava a música e as danças afro-peruanas, até então pouco estudadas. Após desenvolver coreografias para Cumanana, Victoria Santa Cruz (1922-2014, irmã de Nicomedes) viajou para Paris, onde dirigiu La poupée noire (A Boneca Negra) (1965). A peça coreográfica começou como um balé sobre uma boneca trazida à vida por um feiticeiro, que lhe ensinou “boas maneiras”. Eventualmente, a boneca conheceu um grupo de crianças negras, e o balé se transformou em uma exibição de coreografias afro-peruanas. Uma foto da performance mostra Santa Cruz e outros bailarinos executando zapateo, uma técnica de dança de passo hábil em que a bola do pé e o calcanhar se movem independentemente . Através de seu tema e coreografia, La poupée noire desafiou a subjugação da herança afrodiaspórica à cultura eurocêntrica. Em 1966, Santa Cruz fundou seu próprio conjunto teatral, Teatro y Danzas Negros del Perú. Em 1973, tornou-se diretora do Conjunto Nacional del Folklore, onde formou uma geração de artistas peruanos.
Ao recuperar repertórios negros para formar profissionais e apresentar peças, grupos como o Teatro Popular Brasileiro ou o Teatro y Danzas Negros del Perú não estavam apenas preenchendo uma lacuna historiográfica. Eles estavam colocando pesquisas históricas em corpos e no espaço público. Nesse sentido, seus métodos ressoaram com as performances da coreógrafa e antropóloga afro-americana Katherine Dunham a partir da década de 1930. Elizabeth Chin caracterizou as performances como uma “antropologia performática” que “deu corpo” às bolsas de estudos baseadas em texto. Da mesma forma, Victoria Santa Cruz desenvolveu uma “teoria do ritmo” moldada por sua produção teórica e coreográfica. Esses projetos de pesquisa performáticos anteciparam chamadas de intelectuais como Silvia Rivera Cusicanqui ou Boaventura de Sousa Santos para descolonizar o conhecimento, engajando-se com práticas não textuais, como história oral, poesia e música. Assim, argumento que, diante da pergunta “Onde estão os historiadores da arte decolonial?”, um possível caminho aparece ao olhar para os projetos de pesquisa e educação conduzidos por latino-americanos negros.
Esse é apenas um caminho – um que é semelhante à minha especialização em estudos de arte e performance moderna. Palestrantes do seminário da MAC USP destacaram estratégias variadas, como o foco na historiografia (Amancio), poesia (Gomes), afeto (Felinto) ou curadoria descentralizadora (Simões). Mas, no final, eles concordaram que descolonizar a história da arte latino-americana não significa apenas incluir mais artistas de grupos sub-representados em livros didáticos, mostras de pesquisa ou bienais. Descolonizar essa disciplina também implica engajar com pesquisas e metodologias pedagógicas além dos limites disciplinares tradicionais. Nesse sentido específico, a história da arte decolonial tem muito a aprender com a pesquisa e os métodos educacionais de latino-americanos negros como Abdias Nascimento, Solano Trindade ou Victoria Santa Cruz.