MENU
MAC USP
PROCESSOS
CURATORIAIS
Curadoria Crítica e
Estudos Decoloniais
em Artes Visuais
DIÁSPORAS
AFRICANAS
NAS AMÉRICAS
MAC USP /
GETTY FOUNDATION –
CONNECTING ART
HISTORIES PROGRAM

Relatos de estudantes

Querida professora Rosana Paulino, como vai você?

Sitio do Meio, 05 de novembro , 2021

Espero que esteja bem, apesar do contexto adverso (que é viver no Brasil em 2021). Escrevo este relatório sobre o webinário Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas como uma carta endereçada à você por muitas razões. A carta performa um gesto de intimidade que perturba qualquer suposição de neutralidade & verdade em terceira pessoa. Esse é um texto acadêmico. Não performar ele como um texto acadêmico (mesmo o sendo) é minha invenção de liberdade de movimentação. É minha vontade de propor um outro gestual, de tensionar o que pode ser um texto acadêmico. Nem é um gesto original. É o gesto mínimo que eu espero de mim como artista-pesquisador preto & viado no contexto de um evento realizado pelas instituições MAC USP em parceria com a Getty Foundation.

Pensando neste texto aqui eu fiquei pensando nos relatos que Gilberto Freyre e Edison Carneiro escreveram sobre os Congressos Afro-brasileiros. Freyre sobre o de 34 em Recife. Carneiro sobre o de 37 em Salvador. Li esses textos faz uns dois meses na disciplina Leituras criticas de História da Arte Afrobrasileira ministrada pelo professor Elson Rabelo no PPGAV da UFBA. O texto de Freyre é exultante (o que não reduz em nada suas problemáticas ). O texto de Edison Carneiro (+ Aydano da Couto Ferraz) também é laudatório, mas é um pouco mais reativo.

Certâmen de caracter rigorosamente scientifico, sem nenhum protocolo nem discursos exatamente como seu congênere do Recife, o congresso da Bahia somente na véspera da sua realização logrou vencer a descrença dos curiosos dos estudos africanos na Roma negra do Brasil. Pensaram que um congresso de africanologia, para ser levado a effeito com real proveito para esses estudos, precisava ter na frente um Gilberto Freyre.

Esse fragmento do texto de Carneiro e Couto Ferraz explicita as expectativas e as tensões entre atender e subverter as expectativas do que deveria ser o segundo congresso afro-brasileiro. A descrença de antemão (por parte dos “curiosos dos estudos africanos na Roma negra do Brasil”) de que alguém que não fosse um Gilberto Freyre pudesse levar a efeito algo “com real proveito para esses estudos”. Não me interessa aqui analisar a relação entre Edison Carneiro e Gilberto Freyre, nem os dois congressos, ou as possíveis aproximações entre os eventos da década de 30 e o nosso webinário. Me interessa aqui pensar esse processo de negociação entre as expectativas do que sejam os temas/abordagens afrobrasileiros e as possíveis respostas para essas expectativas. A tensão/atenção desses movimentos de resposta.

Mesmo a negação ainda seria uma resposta?

Thiago de Paula, logo nos primeiros dias do webinário fez duas perguntas que me impactaram. Urna delas me voltou muitas vezes ao longo do webinário e me acompanha até agora:

Como articular a recusa com a pratica em constante negociação com politicas de visibilidade, de forma a contribuir para um profundo desaprendizado das categorias coloniais nas instituições artísticas?

Assimilação é igual a captura?

Em que medida nossas presenças em espaços institucionais onde nossas presença foram historicamente sonegadas afeta nossos corpos? Nossas presenças nesses espaços apontam para fraturas e revisões? Ou para o endosso de forças que historicamente sonegaram nossas presenças? O Igor Simões no ultimo dia do webinário falou nas armadilhas da visibilidade e da lógica extrativista. Na cooptação das pautas identitárias. Tokenismo institucional (embora ele não tenha usado esse termo). Na necessidade de estratégias que reforcem a dimensão educativa da curadoria (produção – educação – documentação).

Educativa que não quer dizer necessariamente didática (ou didatizante). Angélica Sanchez também falou da curadoria como gesto educativo, de reescritura.

As falas todas me deixaram pensando em como ainda hoje a produção afrobrasileira o tempo todo precisa se confrontar com parâmetros, categorias e expectativas muitas vezes estranhas às suas práticas. E mesmo quando essa produção rasura ou subverte os parâmetros, categorias e expectativas que lhe toldam esse é um gesto de sobreimpressào. Porque mesmo nesse lugar os parâmetros, categorias e expectativas seguem ativos para se re-colocar como parâmetros, categorias e expectativas pelos quais essa produção vai ser medida. Vários exemplos, né? O próprio uso da categoria popular e/ ou naif tiveram na leitura da produção ao de artistas afrobrasileiros modernos é um índice disso. Penso em diversas trajetórias. Eu vejo um looping de Edison Carneiro tentando provar que pode ser um Gilberto Freyre.

É urna armadilha ou são as condições dadas? As condições dadas são urna armadilha?

É exaustivo ter que provar (que eu não sou) a invenção dos brancos.

Durante o webinario, enquanto estudante senti falta de mais espaços de trocas com os outros estudantes. Percebo que em parte isso é efeito do modelo virtual. Mas observo também que – com exceção da penúltima sessão do ultimo dia, em grupos menos – houve poucas iniciativas para que essas trocas entre estudantes fossem mais efetivas. Um grupo como esses que vocês reuniram é tão rico na audiência quanto nos palestrantes. Senti falta de urna relação um pouco menos vertical entre esses sujeitos. Também considerei limitante que a produção que temos que entregar para recebermos o certificado de participação no evento tenha que ser um texto escrito (a indicação da quantidade de caracteres não deixa ambiguidades nesse sentido). Também sou professor do ensino superior numa instituição publica (trabalho desde 2012 no campus XVIII da UNEB, no interior da Bahia) e sei que qualquer método de avaliação é passível de problematização. Mas corno estamos falando, também, em decolonialidade eu acho que seria importante repensar a centralidade do texto escrito corno espaço privilegiado de validação/ validade. Urna parte considerável de praticas artísticas/ culturais/ intelectuais afrodiaspóricas não tem o texto escrito corno ponto de chegada. E muitas vezes nem corno ponto de partida.

Dito isto, gostaria de saudar toda equipe envolvida neste webinario e frisar que todas as palestras ouvidas neste webinario foram muito instigantes. Conversas complexas, discussões muito ricas. Acredito que a universidade (especialmente a universidade publica) ainda é (ou pode ser) um lugar de experimentação e investigação. Também considero importante esse movimento de auto-investigação promovido por algumas instituições e entendo esse webinario corno urna iniciativa nesse sentido. O coletivo decolonize this place, numa carta aberta o Brooklyn Museum diz urna coisa que eu gosto muito e acho que se encaixa aqui:

Acreditamos que este momento represente urna oportunidade para que o museu reveja – e reconheça plenamente – seu problemático histórico de aquisições , exposição, contratação de pessoal e autoapresentação, com o intuito de reconstruir suas operações, tanto internas quanto aquelas voltadas para o publico.

Elson Rebelo, meu professor na UFBA, sempre chama nossa atenção para que não fulanizemos as discussões. Espero ter conseguido isso. Do lugar onde articulo este texto esse é sempre um risco.

Na conversa final a Renata Felinto falou de formas narrativas validadas pela academia, Rosana. Eu fiquei pensando muito nisso. Fiquei também pensando muito em você, na sua tese, no seu percurso corno artistas-pesquisadora, no modo corno tensiona os materiais com que você trabalha. Você dificulta uma leitura naturalista ou rasteira dos objetos que você cria. Cè sabe, mas nunca é demais repetir, você é urna inspiração pra muita gente. É para mim. Acho que no final foi por isso que quis lhe escrever. Acho que você é alguém que pode entender meu gesto para além das minhas palavras. Alguém que pode acolher este gesto e não desconsidera-lo dentro deste contexto. Alguém com que se pode contar.

Acho que é isso.
Me queira bem.
Lhe quero bem.
Um forte abraço

Marcio Junqueira

Ps: a referência do texto do Edison Carneiro que eu citei lá em cima é : CARNEIRO, Edison; FERRAZ, Aydano do Couto. O Congresso Afro-brasileiro da Bahia. In: Ladinos e crioulos: estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizaçào Brasileira, 1964.