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Painel Curatorial

Entre a raça e as constelações: uma abordagem curatorial sobre o acervo do MAC USP

Esse é um desses momentos raros como não deveriam ser em um país como o nosso. Quarenta pesquisadores que simbolizam boa parte do empreendimento intelectual contemporâneo se reúnem para trocar conhecimentos e investigações com artistas, curadores e outros intelectuais de diferentes cantos do Atlântico, algo que não deveria ser uma exceção no cotidiano de produção de conhecimento no Brasil. E isso só é possível porque estamos imersos no contexto de uma instituição universitária que, de maneiras muito complexas e não sem profundas contradições, assume uma determinada posição que nem sempre foi ou é recorrente. O Projeto do MAC USP, em parceria com a instituição norte-americana Getty Foundation, abre essa possibilidade ao mobilizar uma vontade que se plasma na instituição e é atravessada pelos agentes que a constituem nesse momento. Gestões que pensem a si mesmas em relação à incontornável marca da racialização brasileira vão muito além de uma proposição estratégica do sistema de arte do século XXI. Trazer players negros para a composição da instituição, entre seus conselheiros, e garantir sua fala em espaços decisórios é uma urgência, e sua efetiva realização desafia as configurações privilegiadas nas principais instituições de arte em nosso país.

O que apresento aqui é resultado do convite do projeto a três curadores racializados de diferentes regiões do país — entre eles, eu — para a proposição de olhar para um acervo atualmente formado por mais de 10.000 peças. Devo recortar dele alguns exemplos. Mas selecionar o quê? O primeiro impulso dado pelas linhas de pesquisa, que acredito justificarem essa posição que aqui ocupo, seria a busca por autorias negras no acervo da instituição. Essa era a primeira anotação, e a partir dela empreendi os primeiros esforços. Todavia, na posição de um professor negro de história da arte, não posso deixar de considerar que estamos imersos em uma história da arte e em uma arte que tenho nomeado, junto com outros colegas — sem deixar de pensar em Abdias Nascimento (2016), como “branco-brasileira” (SIMÕES, 2019, 2021; AMÂNCIO, 2021). Essa arte e essa história da arte apontam para um conjunto de escolhas e clivagens que tomou as autorias brancas como elemento primordial dos seus cânones, presença massiva e definitiva de seus acervos e, consequentemente, de suas exposições institucionais, debates críticos e bibliografias.

Dar aos artistas negros do acervo o protagonismo que nem sempre ocuparam nos espaços expositivos da instituição é urgente e inegociável na proposta que formulo. No entanto, me interessa também explorar a história de peças produzidas por sujeitos brancos que, capturando corpos negros, emolduraram perspectivas duradouras na arte brasileira, acendendo um campo de constante disputa. Interessam-me procedimentos que exponham o quanto essas obras perduram nos displays do museu de arte contemporânea da maior universidade da América Latina, no maior país do continente, no maior destino do tráfico negreiro, com a maior população negra fora da África. Para tanto, também é indispensável a possibilidade de acesso aos documentos que confirmam as trajetórias de cada uma das obras selecionadas.

Ao ser chamado para ocupar esse lugar com o qual negocio, que é o de curador, alguns pontos, portanto, são indispensáveis. O primeiro deles é reforçar a centralidade, que tenho pensado, da exposição articulada à noção de montagem fílmica (SIMÕES, 2019). Tenho insistido no fato de que a exposição ocupa o lugar central na escrita de histórias contemporâneas da arte que não necessariamente têm encontrado morada nas nossas principais referências bibliográficas. As mostras, nessa acepção, passam a ser entendidas como espaçosem que diferentes fragmentos se articulam e passam a compor narrativas válidas para pensarmos caminhos contemporâneos para a história da arte. Ainda que esses fragmentos-obras possuam seus contornos específicos, suas proveniências, seus sentidos primeiros, ao entrar no espaço expositivo, suas molduras próprias ingressam em outro campo possível de significações e narrativas, e é aí, nesse espaço de operações, que a montagem fílmica se torna a imagem conceitual para pensar a constituição de narrativas que são próprias daquele encontro circunstancial de fragmentos.

Apostar no que acontece quando esses fragmentos se articulam no espaço em formatos constelares é, então, a premissa básica dessa seleção de obras. Embaralhar cronologias para apostar no conflito é o caminho optado para essa etapa de trabalho. Essa escolha também é uma forma de relativizar o que temos nomeado cronologicamente como moderno ou contemporâneo, em especial quando falamos de uma arte produzida no Brasil, onde essas definições temporais deslizam e se sedimentam o tempo inteiro. Afinal, o que é o contemporâneo no MAC USP, e mais além, quando se toma um contexto que se estabeleceu como matriz a partir de São Paulo? Mesmo as definições de modernismo são imprecisas, principalmente por falarmos de uma coleção formada na metrópole paulistana que insistiu em entender a si mesma como o balizador de uma ideia excludente de modernismo (CARDOSO, 2022).

Quando falo de contemporaneidade, quero entendê-la a partir de três pontos-chave: 1) a compreensão de mobilidade do passado e das suas formas de ser narrado; 2) o reconhecimento de sofisticadas estratégias de poder associadas à visibilidade de algumas narrativas em detrimento de outras; e 3) a atual disputa entre essas narrativas.

Nesse sentido, a exposição contemporânea pode reunir a potência de ser uma ilha de edições para histórias da arte que se comprometem com a necessidade de reposicionar seus discursos, metodologias, objetos de pesquisa e referências teóricas diante, por exemplo, da incontornável assimetria que tem caracterizado aquilo que nomeamos como arte brasileira, quando tomadas a raça e suas necessárias intersecções.

Assentamento como dimensão procedimental, ou sobre encontrar constelações

Evoco aqui uma escolha e uma mudança de rumo que resultou das visitas à reserva técnica e exposições do MAC USP, etapa que acompanhou o processo que leva a este escrito.

Para tornar mais visíveis os encontros que proponho na articulação de um pensamento displaypara escrita da história da arte, tomaria como exemplo uma das pranchas que ilustram o Atlas Mnemosyne (1924-1929), de AbyWarburg.

A prancha seria, nessa tomada, a imagem a facilitar o que eu quero sugerir como encontros constelares entre diferentes peças do acervo, que poderão vir a se colocar em relação de conflito e consenso no espaço expositivo.

No entanto, há de se buscar por entre todas as camadas de referências aquelas que nos tomam de maneira mais próxima, e que dialogam de maneira mais profunda com nossas vontades e compromissos com a assunção de epistemologias localizadas racialmente.

Se quero pensar esses encontros entre imagens que partem de compreender como fomos assentados sobre este lugar que chamamos de Brasil, a imagem de constelação também deve ser de outra ordem.

Dessa maneira é que me surge não a prancha de Warburg, e sim uma outra constelação, de outra ordem e que fala direto com essa proposta curatorial. Falo do trabalho de Rosana Paulino, que pertence ao acervo do MAC USP, e que também orientou as escolhas que se seguem. Interessa-me, aqui sobretudo, a constelação que aprendi a ver com Paulino e que mora sobre a cabeça da mulher negra humanizada por ela na instalação Assentamento (2013). As duas gravuras de Rosana Paulino que fazem parte do acervo do MAC USP entraram para a coleção no ano de 2017;portanto, muito recentemente. Cabe ressaltar que as investigações empreendidas dão conta da existência quase isolada de Rosana Paulino como artista negra no acervo do Museu.

Por agora, quero me deter em Assentamento nº 3 (2012), uma das gravuras. Nela, vemos uma mulher negra de costas.Suas pernas terminam em espécies de raízes que, como diz o título, a assentam no solo. A mulher não está de costas por escolha. As vistas frontais, laterais e de costas de indivíduos negros são uma tipificação. Essas imagens se tornaram recorrentes entre os séculos XVI e XIX, quando o corpo negro e indígena foi apresentado seguindo os protocolos da pseudociência da época, a qual era encabeçada por viajantes europeus que vinham descobrir as particularidades dos trópicos colonizados. Pseudociência que esquadrinha e cataloga existências retirando sua subjetividade e, com isso, sua humanidade.

Figura 1 Figura 1 Legenda

Rosana Paulino, Assentamento nº 3, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Mas quero falar da cabeça da mulher, trazida à categoria de humana pelos procedimentos de Rosana.De sua cabeça brotam o que, à primeira vista, parecem os galhos que completariam essa espécie de árvore ancestral — uma árvore que nasce nas vértebras da mulher e que por ela é sustentada e mantida. A artista já afirmou inúmeras vezes que a palavra assentamento aparece aqui em sentidos complexos, que vão desde a ideia de assentar ao chão, como fizeram os escravizados e escravizadas que aqui chegaram, como também ao ato religioso de assentar uma oferenda nas religiões de matriz afrodiaspórica.

O reencontro com a obra na presença de Paulino, diante do display do Museu, me fez ouvir da própria artista o convite para ver mais de perto. Chegava então um desses momentos no qual uma imagem tantas vezes vista se apresenta de novo em sua capacidade de manter aceso o assombro. Nas pontas dessa árvore moram estrelas. Moram constelações.Das raízes e vértebras-caule surge uma frondosa profusão de linhas que termina em estrelas que se encontram e desencontram.São elas próximas e distantes.Se espalham sobre a superfície do papel sem ter de obedecer a uma única forma, uma única direção. Formam constelações sem perder os contornos de cada uma delas.

Figura 2 Figura 2 Legenda

Rosana Paulino, Assentamento nº 3, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Pois bem, Aby Warburg já não era necessário para pensar os encontros constelares de objetos no espaço expositivo e seus sentidos compartilhados e particulares. A constelação, imagem procedimental e metodológica do que desenvolvo aqui está presente, sim, na humanidade da mulher negra que aparece na obra poética de Rosana Paulino. Afinal, tratamos aqui de assentar também outras epistemologias para a arte, suas engrenagens sistêmicas e suas instituições, suas possibilidades de escrita de uma história da arte que toque na contemporaneidade. Há então de se assentar essa disciplina sobre bases que nos garantam a existência, a continuidade, a mirada para o presente e a reescrita do passado.

Assim, Assentamento nº 3 deixa de ser apenas uma das imagens que pretendo expor e passa a ser também uma referência para a própria ideia de encontros que partem de um núcleo comum e que se espalham em incontáveis possibilidades de sentido, embaralhandocronologias e procedimentos para insistir no assentamento de uma história da arte que problematize a si mesma a partir dos displays do MAC USP.

Na apresentação dos trabalhos que selecionei nesta curadoria, tento, na medida do possível, indicar também o número de vezes em que eles foram expostos, o que também entrou em meu repertório de indagações e que foi possível a partir das informações obtidas junto aos setores de documentação, arquivo e reserva técnica do Museu. Assim, me foi possível tocar, ao mesmo tempo, a reserva e o espaço expositivo. O que foi exibido? O que ficou relegado à reserva? O que se optou mais recorrentemente em mostrar? O que foi mais ou menos visto? Que fragmentos entraram nas histórias erguidas no interior das mostras do Museu? Também aponto a indicação do marcador racial dos artistas selecionados, o que deve estar visível nas sinalizações em uma possível instauração dessa proposta no espaço expositivo.

Figura 3 Figura 3 Legenda

[montagem]
Tarsila do Amaral, A negra, 1923. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rosana Paulino, Assentamento nº 2, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rosana Paulino, Assentamento nº 3, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Assentamentos e disputas do corpo da mulher negra

Assentamento é, então, o ponto de partida que convoca para esses encontros não previstos. Entre as duas gravuras está uma das obras mais controversas da artista modernista paulista, Tarsila do Amaral.

Algo acontece quando aproximamos dois gestos poéticos de duas mulheres artistas brasileiras que em tudo habitam territórios distintos. Ainda que se jogue com cânones modernistas já há muito codificados na iconosfera nacional, como é o caso de A negra (1923), de Tarsila do Amaral, há um espaço de criação quando esta é justaposta ao corpo da mulher negra a assentar a história de um país e de toda uma invenção de modernidade que se impõe no trabalho de Rosana Paulino. Justapô-la aqui à mulher negra, tomada pelo olho de uma artista branca da elite paulistana e celebrada como nome fundamental de um modernismo artificialmente nacional, não implica evidenciar uma pretensa essência que poderia habitar tanto uma como outra artista e se reverter em visualidade. Cabe, antes disso, explorar as brechas que aproximam e distanciam os anos de 1923 e 2012, a arte moderna e contemporânea e as visões sobre os corpos de mulheres negras no Brasil.Há também a mudança do que eram autorias possíveis no círculo de reconhecimento do sistema artístico e suas interdições e acessos nos tempos e existências de uma e outra.

Sem dúvida, igualmente está em jogo aqui o negro representado da modernidade à contemporaneidade. Chamo atenção para a invenção do negro moderno na arte branco-brasileira poucas décadas após a abolição. Essa figura representou, em grande escala, a reencenação de ideias de primitivo que habitavam as referências modernistas europeias e que aqui substituem a África ou o Taiti pelos morros e resquícios de senzalas. Concordo com Rafael Cardoso quando afirma que, independentemente das intenções de cada artista, o procedimento de configurar o subalterno por meio da folclorização e/ou paródia teve efeito de perpetuar estereótipos (CARDOSO, 2022, p. 26).

Ao mesmo tempo, em relações contemporâneas, se expõe a virada conceitual protagonizada pela produção de mulheres artistas negras brasileiras que têm proposto não apenas outros repertórios imagéticos, mas, acima de tudo, reinterpretações da própria ideia de país.

Outro elemento de análise é a frequência com que a obra de Tarsila foi exibida e referenciada em publicações. Segundo os dados do setor de documentação do MAC USP, entre 1961 e 2020, a obra de Tarsila esteve exposta 73 vezes em displays de museus brasileiros e estrangeiros e aparece, segundo os dados fornecidos no Museu, em mais de 75 publicações.

Trata-se, então, de tocar na frequência com que obras canônicas de artistas brancos e paulistas, oriundos de espaços sociais elitistas, se efetivam no olho e na mente do público, a partir de uma articulada estrutura institucional que as mantém em estado de constante visibilidade. Claro que há de se considerar que se trata também de um trabalho que não acontece sozinho, mas que ao mesmo tempo impacta e é impactado por um conjunto de verdades sedimentadas na história, crítica e teoria sobre a centralidade do modernismo paulista e da artista como um de seus principais ícones, tornando-a também uma “presença desejada”.Entendo que o desejo não mora fora do espaço da cultura; ele é articulado também pelos seus objetos e, antes disso, nas seleções que apresentam alguns em detrimento de outros.

Some-se a essa constelação uma outra peça-fragmento: a xilografia de Antonio Henrique Amaral, artista branco, intitulada Madona Negra (1967), e que compõem o álbum O meu e o seu. Na xilogravura, uma mulher negra vista de frente tem seus seios tocados por duas mãos brancas que parecem remeter à mão de um homem e à de uma mulher, enquanto a madona negra porta em sua mão uma espécie de taça.

Figura 4 Figura 4 Legenda

[montagem]
Antonio Henrique Amaral, Madona negra, 1967. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Emiliano Di Cavalcanti, Sem título (Mulher sentada), 1941. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Claro que entendo as proveniências e os projetos particulares de criação desses artistas; no entanto, estou pensando naquele imprevisto que acontece no encontro de diferentes fragmentos no espaço expositivo. Nesse sentido, é preciso que se compreenda que o universo de intenções do artista e seus contextos particulares é uma das várias dimensões da vida de uma obra, entendendo que ela habita tempos longos e encontra eco também nas suas formas de exposição. A obra foi exposta apenas uma vez, na mostra O papel da arte: obras em papel na coleção MAC USP (2000–2001),e referenciada na publicação de mesmo título.

Ainda toma lugar, nessa aproximação, o trabalho de Di Cavalcanti, figura emblemática na bélica relação entre racialização e modernidade com uma de suas muitas imagens de mulheres negras nomeadas mulatas. A peça em questão é um precioso trabalho datado de 1941, intitulado Mulher sentada, em guache e grafite sobre papel, exposta dezoito vezes no MAC USP e em outras instituições entre os anos de 1985 e 2018.

A contundente obra de Rosana é, aqui, o elemento que fricciona as representações vindas de artistas brancos modernistas e os vícios de encapsular corpos negros dentro de cânones e situações pré-estabelecidas. O display passa a ser a ilha de edições que possibilita essas leituras.

Figura 5 Figura 5 Legenda

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Jacob Lawrence, A Aula, 1946. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). © Lawrence, Jacob/AUTVIS
Flávio Cerqueira, Foi assim que me ensinaram, 2011. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Fotografia: Rômulo Fialdini

Aulas: Jacob Lawrence e Flavio Cerqueira

A aula, de 1946, do artista negro norte-americano Jacob Lawrence, é um destaque importante na constituição do acervo do MAC USP. No entanto, um olhar sobre a documentação da peça informa que desde sua efetivação, em setembro de 1949, ela foi apresentada apenas cinco vezes — quatro delas ainda no MAM, anterior à fundação do MAC USP e apenas uma entre 2012 e 2013, em uma mostra nomeada Crítica de arte moderna no Brasil, que parece ser resultado da experiência de exercício no âmbito da pesquisa acadêmica.

Escolher expô-la é também forçar a entrada de outras imagens e referências para contribuir com os discursos que o Museu ergue sobre moderno e contemporâneo, e reforçar a chave de autoria negra que não aparece de forma recorrente nas exposições e nem nos displays da instituição ao longo do tempo.

Aqui, o trabalho de Lawrence aparece justaposto a outra noção que se borda pelo espaço da educação e suas singularidades. Trata-se do trabalho do artista negro contemporâneo Flávio Cerqueira, Foi assim que me ensinaram, de 2011, e que passa a fazer parte do acervo em 2014, através de doação do artista. O trabalho foi exposto desde 2013 até 2020 na exposição permanente do Museu.

O tema educação e suas implicações aparece aqui como forma de provocar a ideia de continuidade temporal na produção de artistas negros da diáspora. A aula, feita de professor negro diante de uma classe de alunos pretos, na obra de Lawrence, e sua reunião com o menino que está de castigo, na obra de Cerqueira, é apenas uma estratégia para demostrar a contínua produção de artistas negros em contextos afrodiaspóricos.

Emblemas, Exus e Candomblés

Quando se trata da relação entre arte afro-brasileira e religiosidade, há uma referência simultânea à mais recorrente concepção do que seja essa arte e, ao mesmo tempo, a uma espécie de contínua associação que aprisionou, durante muitos anos, a produção negra apenas a essa chave pela crítica especializada. De fato, não é exagero a compreensão de que desde textos clássicos, como aquele escrito por Nina Rodrigues em 1904, na Revista Kosmos, passando por escritos de Mariano Carneiro da Cunha, até a definitiva colaboração de Kabengele Munanga, com o seu Arte afro-brasileira: o que é afinal? (2015),a religiosidade é compreendida quase como sinônimo de afro-brasilidade. Embora a maioria dessas definições faça referência a uma busca de possíveis origens, não é incomum que a religiosidade vire quase categoria obrigatória para boa parte da crítica especializada em relação à produção de artistas negros, mesmo que os trabalhos não convirjam ou partam dessa referência.

Nos trabalhos de Rubem Valentim, os símbolos da religiosidade negra brasileira se impõem como elementos indispensáveis da formulação do moderno ao contemporâneo na arte local.O artista negro é fortemente associado ao recorrente vínculo entre arte afro-brasileira e religiosidade, mas não se entrega apenas por essa chave. Emergem, a partir de seus trabalhos, espaços de trânsito que acumulam a experiência afro-atlântica e um imponente testemunho do que seja uma modernidade necessariamente pensada por essa via.

Figura 6 Figura 6 Legenda

[montagem]
Carybé, Figura de Candomblé, 1956. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rubem Valentim, Emblema IV, 1989. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Mario Cravo Júnior, Exu, 1952. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Rubem Valentim aparece aqui com seu Emblema IV, de 1989, exibido duas vezes no Brasil, em 1991 e 2007, e parte de uma considerável coleção do artista presente no acervo do Museu.

No entanto, a religiosidade é também matéria que se mostra de forma cambiante em representações de artistas brancos, geralmente associadas a uma visão estrangeira aos processos inerentes dessas religiões.Bom exemplo é a litografia de Mario Cravo Jr., em que a figura de um pretenso Exu aparece representada com traços entre o bestial e o infantil.

E se a essa constelação também se somasse Figura de Candomblé, de 1956, do artista branco argentino que ocupou boa parte do imaginário do que foi durante décadas entendido como afro-brasileiro, o argentino Carybé? E se o display permitisse tacitamente comparar essas autorias de artistas negros e artistas brancos? Longe de fornecer respostas definitivas, friccionar essas diferentes peças pode ser caminho para a abertura de outros espaços para sua leitura. Há também nessa fricção um jogo que passa pela associação de arte afro-brasileira a uma espécie de conteúdo intrínseco, por meio do qual a religiosidade abriu caminho para que esse terreno fosse cercado pelo conteúdo e não pela autoria negra, como se tem tomado como pressuposto nas últimas décadas do século XX e nessas primeiras do século XXI.

Figura 7 Figura 7 Legenda

[montagem]
Heitor dos Prazeres, Moenda, 1951. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Alice Brill, Sumaré. Da Série Flagrantes de São Paulo, 1954. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Alice Brill/Instituto Moreira Salles
Alice Brill, Viaduto do Chá. Da Série Flagrantes de São Paulo, 1954. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Alice Brill/Instituto Moreira Salles
Max Bill, Unidade Tripartida, 1948-1949. ©Bill, Max/AUTVIS, Brasil, 2022

Moendas e modernidades assimétricas

Em um canto da sala, paira a Unidade tripartida(1948-1949), de Max Bill. Ali está como uma das peças máximas de uma vontade de Brasil moderno que se expande da obra e vai se enquadrar em processos complexos de invenção de uma sociedade que pretende dissimular as assimetrias de sua constituição. Reúnem-se projetos que passam pela Bienal de São Paulo de 1951 como espaço de afirmação de novas expectativas econômicas e geopolíticas. Não nas bordas, mas no epicentro desse debate, outras modernidades se sobrepõem. Na constelação, uma Bienal e uma noção de arte moderna marcada por uma série de hierarquizações que passam por raça e classe. Moenda, de 1951, a obra chave da produção do artista negro Heitor dos Prazeres, premiada na mesma primeira Bienal de São Paulo, joga-nos em uma trama que toca desde categorias artísticas a lugares da população negra no tal moderno brasileiro.Mais uma vez, pelos olhos de outra estrangeira, parte da vida urbana também se junta aqui, a partir da série de fotos de Alice Brill, Flagrantes de São Paulo(1954). Há de se considerar ainda a possibilidade de inserção de documentações como os registros da lei Afonso Arinos, que também seria proposta no ano de 1951. Modernidades que insistem e perduram no tempo que nomeamos como contemporâneo.

Geometrizações, construções e autorias negras

Penso em uma peça que não está no acervo. Penso na imagem conceitual que pode surgir pela série Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical (2017-2018), também de Rosana Paulino. Na superfície de Rosana, elementos geométricos se referem à artificial tradição da geometria como emblema de um Brasil moderno em diálogo com as tendências internacionais da arte, em disputa com imagens que chamam o tempo inteiro por sua impossibilidade de enquadramento na língua que se impõe.

Figura 8 Figura 8 Legenda

Rosana Paulino, Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical, 2017-2018.

A herança construtiva e geométrica é uma constante no acervo do MAC USP. Não esqueçamos que essa é a sede da Unidade tripartida, de Max Bill. Ainda que tomando essa vertente como um cânone na arte do século XX, é possível abordá-la pelo viés de um longo arco de tempo protagonizado por trabalhos de artistas negros. Com sentidos e usos diversos em campos de significação que se aproximam e se distanciam,temos os trabalhos quejustapõem o Xangô da obra Sem título (1968) de Valentim, entre o bi e o tridimensional (a obra aparece regularmente nas exposições do Museu entre 1986 e1997 , retornando em mostras em 2002, 2007 e 2010), em zona de proximidade com Emanoel Araújo, com O quadrado, o círculo e o disco fragmentado, de 1994 (em exposição permanente desde 1988 no jardim externo da cidade universitária, onde estava o antigo edifício sede do MAC USP),e Estruturas dissipativas/Balanço, de 2012, de autoria do artista negro, radicado no Rio Grande do Sul, Rommulo Vieira Conceição. A obra de Rommulo Conceição ingressa no acervo por meio de doação conjunta do artista e da galeria Casa Triângulo em 2013, tendo sido exposta naquele mesmo ano e em 2015. Essas obras se agrupam para falar da sobrevivência dos elementos construtivos na arte contemporânea de autoria negra.

Figura 9 Figura 9 Legenda

[montagem]
Rubem Valentim, Sem título, 1968. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Emanoel Araújo, O quadrado, o círculo e o disco fragmentado, 1994. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rommulo Vieira Conceição, Estruturas dissipativas/balanço, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Além disso, juntas, jogam constantemente com a chave histórica e já ultrapassada de uma arte afro-brasileira que se explicaria por se ater a um conjunto prévio de repertórios intrínsecos aos objetos e que poderiam ser imediatamente associados a um tal repertório de assuntos negros. Chaves como essa se afirmam e se implodem simultaneamente na reunião desses trabalhos.Abre-se brecha para um debate que toca nas possibilidades de um artista negro tratar de elementos que não são necessariamente associados ao debate sobre raça, como acontece nas estruturas construtivas de Rommulo Conceição.

Um programa de provocação de pensamentos

Essa proposição não faz sentido se tomada apenas na fisicalidade da exposição. Todas essas ações só podem reverberar em suas potências se forem inextricavelmente atreladas a um programa educativo que coloque o público como agente das muitas relações em aberto pela aproximação dessas peças.Nesse sentido, o programa não deve ser colocado como aquele lugar de ilustração das ideias da exposição ou da curadoria, mas deve ser necessariamente o lugar inaugural de um contínuo sentido de desconfiança daquilo que está dado.

A proposição aqui apresentada é, em todas as suas configurações, também uma proposição educativa. Assim se faz porque evoca a dúvida como principal material de trabalho.

Seria de extrema importância, por exemplo, um programa continuado voltado a educadores e que parta das diferentes indagações que estão aqui enunciadas, laboratórios coletivos de criação e proposições que suscitem constantemente o público a desconfiar do que está posto nesses encontros.

Da maneira como exercito aqui, não há hierarquização entre os elementos de debate que vêm do campo da história e crítica da arte e aqueles que cumprem a função de instigar outros olhares que ativem os trabalhos de diferentes formas possíveis e que são viabilizados pelas propostas educativas. No momento em que um museu busca se redimensionar diante dos desafios de uma nova gestão, o fortalecimento da instância dos programas educativos pode ser o lugar de exercício de uma crítica institucional cotidiana, crítica essa que também motivou esse conjunto ainda superficial e pontual de propostas. Trago, para encerrar, a fala de dois colegas que admiro muito. De Thiago de Paula, reforço a ideia central do programa educativo em um museu que, de fato, esteja focado na redistribuição urgente. De Horrana Santoz, curadora negra da Pinacoteca do Estado de São Paulo, um resumo da estratégia, proferido em conversa informal: “essa parede é grande, talvez eu não possa derrubá-la, mas eu vou causar algumas infiltrações”.

Referências

AMANCIO, Kleber A. de O. A História da Arte branco-brasileira e os limites da humanidade negra. Revista Farol,vol.17, nº 24 (inverno), 2021, p. 27–38. Disponível https://periodicos.ufes.br/farol/article/view/36351. Acesso em 28 fev. 2022.

CARDOSO, Rafael. Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

MUNANGA,Kabengele. Arte afro-brasileira: o que é afinal? Rio de Janeiro: Azougue, 2015.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.

RODRIGUES, Augusto Nina. As Bellas Artes dos colonos pretos no Brazil: a escultura. Revista Kosmos, ed. 8., 1904. Disponível emhttp://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=146420&pesq=nina+rodrigues&pagfis=386. Acesso em 28 fev. 2022,

SIMÕES, Igor M. Montagem fílmica e exposição: vozes negras no cubo branco da arte brasileira. Tese (Doutorado em Artes Visuais), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.

SIMÕES, Igor M. . “Todo cubo branco tem um quê de Casa Grande: racialização, montagem e histórias da arte brasileira”.Revista Philia – Filosofia, Literatura & Arte, vol. 3, nº 1 (maio), p. 314–329, 2021. Disponível em https://seer.ufrgs.br/philia/article/view/113790. Acesso em 28 fev. 2020.

WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madri: Akal, 2010.

Figura 1 Figura 1 Legenda

Rosana Paulino, Assentamento nº 3, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Figura 2 Figura 2 Legenda

Rosana Paulino, Assentamento nº 3, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Figura 3 Figura 3 Legenda

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Tarsila do Amaral, A negra, 1923. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rosana Paulino, Assentamento nº 2, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rosana Paulino, Assentamento nº 3, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Figura 4 Figura 4 Legenda

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Antonio Henrique Amaral, Madona negra, 1967. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Emiliano Di Cavalcanti, Sem título (Mulher sentada), 1941. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Figura 5 Figura 5 Legenda

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Jacob Lawrence, A Aula, 1946. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). © Lawrence, Jacob/AUTVIS
Flávio Cerqueira, Foi assim que me ensinaram, 2011. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Fotografia: Rômulo Fialdini

Figura 6 Figura 6 Legenda

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Carybé, Figura de Candomblé, 1956. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rubem Valentim, Emblema IV, 1989. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Mario Cravo Júnior, Exu, 1952. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

Figura 7 Figura 7 Legenda

[montagem]
Heitor dos Prazeres, Moenda, 1951. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Alice Brill, Sumaré. Da Série Flagrantes de São Paulo, 1954. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Alice Brill/Instituto Moreira Salles
Alice Brill, Viaduto do Chá. Da Série Flagrantes de São Paulo, 1954. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Alice Brill/Instituto Moreira Salles
Max Bill, Unidade Tripartida, 1948-1949. ©Bill, Max/AUTVIS, Brasil, 2022

Figura 8 Figura 8 Legenda

Rosana Paulino, Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical, 2017-2018.

Figura 9 Figura 9 Legenda

[montagem]
Rubem Valentim, Sem título, 1968. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Emanoel Araújo, O quadrado, o círculo e o disco fragmentado, 1994. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Rommulo Vieira Conceição, Estruturas dissipativas/balanço, 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

  • 1Este artigo é uma versão revisada e ampliada da fala realizada no seminário proposto pelo MAC USP e Getty Center Foundation, MAC USP Processos curatoriais: curadoria crítica e estudos decoloniais em artes visuais –diásporas africanas nas Américas, entre 04 e 08 de outubro de 2021
  • 2Junto comigo no projeto estavam a curadora brasileira Diane Lima e o curador Claudinei Roberto. Ambos são referências nos debates sobre arte e raça no Brasil.
  • 3As elaborações da pesquisadora Renata Bittencourt sobre essa obra de Lawrence estão presentes nessa publicação e são uma forma de compreender as implicações e trânsitos da obra desse artista negro norte-americano.
  • 4Exposta no seminário proposto pelo MAC USP e Getty Center Foundation, MAC USP Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas, entre 04 e 08 de outubro de 2021.