Em parceria com a Getty Foundation, entre os dias 4 e 8 de outubro de 2021, o MAC-USP realizou o oportuno e muito bem-vindo webinário Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas, o qual eu tive o prazer de acompanhar como aluna do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA USP. O webinário contou com falas de diversos curadorxs e pesquisadorxs, entre eles Thomas Cummins, Angelica Sanchez, Mônica Cardim, Renata Felinto, Thiago de Paula Souza, Luzia Gomes, Kleber Amancio, Renata Bittencourt, Kimberly Cleveland, Claudinei Roberto da Silva, Diane Lima e Igor Simões, além da contribuição da artista e conselheira do museu Rosana Paulino e de debates e pronunciamentos de abertura e encerramento.
De início, destaco que, em conjunto, as apresentações revelaram a existência de diversos pontos de diálogo que merecem ser discutidos detidamente e cujo potencial de reflexão é imenso. Em um primeiro momento, chamo atenção para o fato de que parte significativa dos pesquisadorxs e curadorxs convidados demonstrou um visível interesse por tecer reflexões sobre iniciativas e práticas curatoriais emancipadoras no horizonte da arte contemporânea, em falas que pautaram as possibilidades, os caminhos, os desafios e o potencial transformador de perspectivas decoloniais em diálogo com a esfera da cultura, com a poesia e com a história da arte (Thiago de Paula Souza, Luzia Gomes, Diane Lima, Claudinei Roberto e Silva e Igor Simões). Destaco também as falas que, nessa mesma linha, optaram por apresentar novos olhares, recortes curatoriais e abordagens da história da arte partindo, especificamente, de obras do acervo do MAC USP (Kleber Amancio, Renata Bittencourt, Diane Lima, Igor Simões). Cumpre mencionar, por fim, as apresentações que se detiveram no exame de acervos e arquivos de imagens representando a figura dx negrx (Mônica Cardin) e as apresentações que propuseram novas leituras sobre a obra de artistxs negrxs no Brasil (Kimberly Cleveland, Renata Felinto, Angelica Sánchez, Kleber Amancio). Diga-se de passagem que esse agrupamento é apenas instrumental, uma vez que muitas das apresentações poderiam pertencer a mais de um grupo e que essa organização não esgota as questões levantadas pelas apresentações.
Nesse breve relato, buscarei sinalizar algumas entre as muitas pontes de diálogo entre aquelas apresentações que reuni por se debruçaram especificamente sobre as possibilidades de (re)leitura do acervo do Museu de Arte Contemporânea da USP. Kleber Amancio, por exemplo, deteve-se na análise de A Negra, de Tarsila do Amaral, notabilizada por ser uma das obras mais exibidas, mais célebres e nem por isso menos problemáticas do acervo do MAC USP. Em sua apresentação, Amancio realizou um apanhado sumário de interpretações dessa obra, nas quais ela é associada a referências visuais da arte europeia, a exemplo de pinturas de Édouard Manet, Paul Gauguin, Pablo Picasso, Fernand Léger, Constantin Brancusi, entre outros. Ao fazer isso, Amancio filiou A Negra a um momento em que a Europa e Paris, em particular (local onde a pintura fora concebida), viviam sob o fascínio da “negrofilia” – isto é, a um momento em que a figura do negro passou a despertar fascínio nos meios de arte europeus, adquirindo conotações positivas sem que estereótipos longamente decantados fossem necessariamente contestados em sua essência. Desta feita, Kleber Amancio localizou A Negra como uma obra emblemática daquilo que ele define como “história da arte branco-brasileira”. Não apenas porque A Negra seria um exemplar da “arte branco-brasileira” – uma arte que, em última instância, é inseparável da autoria branca e de sua filiação com uma estirpe da arte europeia, em sua relação com o colonialismo –, mas, também, porque se trata de uma obra crucial no interior das narrativas que compõem o cânone de uma história da arte que privilegia obras produzidas por brancos, ainda que retratando negrxs.
Se Kleber Amancio centrou sua fala em uma obra célebre e repetidamente exposta do acervo do MAC USP, Renata Bittencourt optou por se debruçar na análise da obra Uma aula, de Jacob Lawrence – uma pintura que, nos antípodas de A Negra, foi exibida poucas vezes e que eu, em particular, não conhecia. É curioso notar como as falas de Amancio e de Bittencourt indicam que a escolha do que é exposto e do que se mantém na reserva técnica do museu tem como efeito colateral ora o favorecimento, ora a obliteração de determinadas obras, condicionando nosso conhecimento sobre arte em geral. Supondo que esse raciocínio esteja correto, é necessário enfatizar o papel do MAC USP no que concerne à institucionalização do cânone a que nos referimos há pouco: de certo modo, se a pintura de Tarsila do Amaral se cristalizou como obra emblemática do Modernismo brasileiro e de sua história, isso ocorreu em contributo com políticas curatoriais do museu, que, atualmente, beneficia-se do próprio fato de conservar entre os exemplares de seu acervo uma das obras centrais nas narrativas estabelecidas sobre a arte no Brasil. Exibir A Negra, nessas condições, pode significar uma política de reafirmação de paradigmas que se retroalimentam na constituição do cânone artístico que vigora na história da arte brasileira.
Isso não quer dizer, é claro, que A Negra deva ser banida das exposições do museu. Quanto a esse ponto, a apresentação de Igor Simões revelou-se estimulante: nela, o pesquisador e curador ensaiou alternativas de propostas curatoriais nas quais a montagem – a justaposição de obras heterogêneas – opera como mecanismo problematizador do lugar e do significado das obras. Uma das alternativas ensaiadas, por exemplo, contrapunha A Negra, de Tarsila do Amaral, a um conjunto de obras de Rosana Paulino capazes de expor as tramas que costuram e suturam o corpo da mulher negra, expondo as lógicas da violência e do desenraizamento, sem, por isso, reafirmá-las. Deslocada do panorama do Modernismo no Brasil ou do contexto mais abrangente da “negrofilia” das vanguardas artísticas europeias e lado a lado com as obras de Paulino, A Negra adquiriu novas conotações, reveladas por meio de ressonâncias e dissonâncias inesperadas.
O mesmo ocorreu com outras obras célebres do acervo do MAC USP, segundo a proposta de Igor Simões. É o caso, por exemplo, daquela que talvez seja a “menina dos olhos” da coleção do museu: a Unidade Tripartida, do suíço Max Bill, ganhadora do Prêmio Internacional Escultura Estrangeira (Federação das Indústrias) da primeira Bienal de São Paulo, em 1951. Essa é uma obra que se estabeleceu como uma espécie de “gatilho” para a abstração no Brasil, impondo-se como referência fundamental para o movimento concretista em São Paulo. De acordo com a proposta de montagem de Simões, entretanto, essa escultura não aparece lado a lado com outras obras abstratas, como habitual, mas, sim, junto à pintura Moenda, de Heitor dos Prazeres, que, naquele mesmo ano de 1951, ganhou o Prêmio Aquisição da primeira Bienal de São Paulo. Com esse gesto, o curador e pesquisador dá um nó em dois fios da história aparentemente separados e, assim, lembra-nos de que a história da arte não é feita de uma única narrativa linear na qual vigora o concretismo brasileiro, mas é tecida de diversas modernidades que, emaranhadas, tornam o que parecia unívoco algo mais complexo.
Nesse ponto, a apresentação de Igor Simões dialogou com o que havia sido exposto por Diane Lima na mesma mesa de debates. Em sua fala, a curadora e pesquisadora tomou uma fotografia de Peter Scheier como um documento significativo para a reflexão sobre as contradições que permearam a I Bienal de São Paulo e que, ainda nos dias atuais, permeiam as narrativas sobre a arte brasileira. Essa fotografia, que faz parte de um conjunto de imagens realizadas durante a montagem e a cerimônia de abertura da célebre Bienal de 1951, registra dois trabalhadores negros limpando o chão do pavilhão suíço da exposição, em frente a pinturas de Sophie H. Taeuber-Arp. Nela, as formas abstratas – em toda a sua suposta modernidade – contrastam com um modelo de trabalho que nada tem de moderno. É como se, nos bastidores daquela exposição, a “limpeza” real por trás da aclamada “limpeza” e “clarividência” das formas abstratas fosse revelada em sua crueza, desmontando o discurso que sustenta a suposta universalidade da abstração artística. A partir da análise desta e de outras fotografias de Scheier, Diane Lima interrogou o lugar da abstração na história da arte brasileira. A discussão desdobrou-se com a análise de obras de Rosana Paulino nas quais a abstração é também questionada como discurso e que, junto a obras de outrxs artistas contemporânexs, permitiram que Diane Lima apresentasse formas alternativas de abstração de uma perspectiva negra.
As questões levantadas por essas e pelas demais apresentações revelam as muitas possibilidades de exibição das obras do acervo do MAC USP, que merecem ser vistas e interpretadas a partir de ângulos diferentes daqueles já instituídos pelas narrativas estabelecidas sobre a arte moderna. Ao expor essa necessidade e ao dar visibilidade ao trabalho consistente que vem sendo realizado nesse sentido por curadorxs e pesquisadorxs negrxs por todo o Brasil e pelo mundo, o webinário Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas mostrou-se estimulante e desafiador, lembrando-nos de que muito já foi feito, mas que ainda há muito a se fazer. Como aluna de pós-graduação e participante do webinário, espero que esse evento possa se expandir e desencadear iniciativas tais como exposições, grupos de estudo, disciplinas, entre outras. O acervo do museu, afinal, conta com obras cujo potencial para reflexões é virtualmente inesgotável e que parecem, atualmente, requerer um espectro de modelos e estratégias curatoriais cada vez mais abrangentes e diversas, como o webinário foi capaz de evidenciar.