Começo este texto com Exu para que ele abra e guie os caminhos e, também, por entendê-lo como a força, axé, responsável por desmantelar os binarismos que ordenam a colonialidade. Laroyê!
Matar o pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje é a tarefa assumida por pesquisadores negres das artes que, ao encarar as imagens produzidas pela colonialidade, ou encerradas em definições coloniais, promovem curadorias potentes o suficiente para deslocá-las do estado de Maafa (NJERI, 2019, p. 7). E, ao fazê-lo, criam a partir do recalque narrativo, do vácuo e do silêncio sobre a presença negra altiva na construção da nação e de suas imagens. Transitam no que hegemonicamente não se conhece, e fabulam. Partem da invenção do que é ser negro e da própria denominação marcada pela colonialidade, para conjurar o lugar do negro dono e sabedor de sua trajetória. São corpos negros que se reinscrevem no sistema de arte.
“Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos” – citando Le Goff (1996, p. 109), o professor Claudinei Roberto da Silva lembrou-nos de algumas palavras que são chaves para desencadear ações insurgentes. Uma delas é arquivo. Percorrer o arquivo que forma a história da arte branco-brasileira é deparar-se com escolhas feitas ao longo do tempo. Para Achille Mbembe, no texto The Power of the Archive and its Limits (2002), o arquivo, mais do que a preservação e registro de dados, pode ser entendido pela escolha e pelo status que essa escolha representa. O arquivo seria o resultado de um julgamento e o exercício de autoridade e poder específicos ao definir quais documentos são arquivados e quais são descartados. Ao pensar no arquivo que entendemos, como sociedade, como história da arte branco-brasileira, percebe-se a presença de determinadas formas de representar, autorias e discursos. Tal arquivo constrói um imaginário racista e supremacista branco e colabora, segundo Edimilson de Almeida Pereira (2018), para a manutenção de uma ordem projetada por grupos hegemônicos, não a partir da exclusão, mas, sim, de uma inclusão parcial de grupos minorizados na sociedade por meio da imagem.
Ao passo disso, é possível encontrar-se com a conceituação de arte branco-brasileira desenvolvida pelo professor Kleber Amancio, segundo a qual, na passagem do século XIX para o século XX, há a formação da dinâmica artística formal brasileira. Nesse momento, há a definição do que seria arte negra, conceito que delimitaria também a humanidade negra. Junto a isso, foi criado um cânone no qual artistas brancos teriam sido elevados aos grandes artistas da Nação, em um processo que se relaciona intimamente com as dinâmicas raciais em Brasil.
Ao pensar nas relações raciais e na ordenação social em Brasil, uma imagem não escapa de nossa memória coletiva e do que normalizamos como sociedade. A pintura A Negra, de Tarsila do Amaral (1923, acervo MAC-USP), pode despertar reflexões sobre assentamentos e a disputa do corpo da mulher negra nas artes, como nos disse o professor Igor Simões.
Ao retratar sua visão de brasilidade encarnada na representação do corpo feminino negro nu, Tarsila evoca elementos compositivos que não diferem da lógica colonial que modela representações de negritude na história da arte branco-brasileira.
Certamente, recorrendo à história que as imagens contam, nota-se que a incidência do corpo feminino escravo sentado no chão marca a visualidade da cultura patriarcal luso-brasileira. Ao escolher o corpo de uma negra nessa posição, Tarsila ativou, talvez sem percebê-lo, a latência de questões que atualmente suscitam inúmeras problematizações, tanto no campo sociológico quanto no antropológico, explicitando modos de dominação impostos por povos europeus a outras culturas (HILL, 2017, p. 157).
Marcos Hill escreve sobre a ativação que Tarsila promove de questões em torno da existência negra no Brasil e de um campo iconográfico racializado e mantenedor de reminiscências da escravidão. A Negra funciona, portanto, como um lugar de memória da escravidão. Ao refletir sobre como a mão branca nos retrata, torna-se notável fisgar que a existência branca também é atravessada pela maneira como negros e negras são representadas, uma vez que a diferença é marcada pela relação entre opostos. Esse atravessamento ocorre justamente pela diferenciação que confirma a todo o tempo a branquitude no confortável lugar de universalidade, racionalidade e civilização. Sem nome, sentada ao chão, próximo da folha de bananeira que diagonalmente atravessa a tela, nua, com seio destacado, cabeça pequena, sem cabelos, destituída de passado ou futuro, A negra é testemunha inerte de uma representação que a torna continuadamente presente no tempo colonial a partir do perverso jogo de linguagem branco. Jogo que segue, às vésperas do centenário da pintura, revelando-nos a colonialidade ativa no sistema de arte branco-brasileiro.
Mas temos olhos de enxergar. Em ocasião da exposição Tarsila Popular, realizada em 2019 no MASP, a tela foi exposta entre dois autorretratos de Tarsila do Amaral. É importante salientar que a pintora retrata a si mesma de forma a se tornar extremamente reconhecível em sua expressão, traços, cabelos, vestimentas e adereços, detalhes cuidadosamente inseridos na construção de sua individualidade na tela que salientam a marca de diferenciação entre o eu-sujeito e o outro objetificado, em uma condição de renovável subalternidade.
A saída dessa condição ocorre por meio de mãos pretas. A professora Renata Felinto apresentou as pesquisas sobre Ana das Carrancas, Madalena dos Santos Reinbolt e Raquel Trindade. Um esforço empreendido coletivamente para o resgate e a preservação das memórias e ações poéticas de mulheres negras. A disputa pelo corpo da mulher negra, mencionada por Simões, também compreende nossas memórias e a organização de toda a sociedade brasileira.
Os processos curatoriais que consideram a decolonialdiade e as diásporas africanas nas Américas promovem sacudimentos de modelos de representação racializados e de toda a sociedade. É na enunciação do indizível e na volta crítica aos signos que delimitam uma existência subalterna que se torna possível reinscrever a cartografia da intolerância pelo viés da estética. Em Axexê da negra ou o descanso das mulheres que mereciam serem amadas (2017), Renata Felinto realiza uma performance de autoinscrição e autodefinição, uma vez que, ao conjurar um conceito/ação nagô e as existências de mulheres negras que foram amas de leite a partir de suas representações na arte branco-brasileira, a artista, pesquisadora e professora conjura também terrenos para projeções de futuros possíveis para mulheres negras da contemporaneidade.
A artista curadora revive essas vidas trazendo a memória de uma humanidade que sempre esteve presente, mas que estava soterrada nos escombros da representação eurocêntrica. Indica também o caminho para desestruturar todo um sistema. Caminho este que parte de uma rememoração que dá ouvidos e forma às vozes silenciadas pelo processo histórico. É matar o pássaro ontem com a pedra que só se jogou hoje.
Referências Bibliográficas
HILL, M. “Mulatas” e negras pintadas por brancas: questões de etnia e gênero presentes na pintura modernista brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2017.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.
MBEMBE, Achille. The Power of the Archive and its Limits. Refiguring the Archive. Cidade do Cabo: Clyson Printers, 2002.
NJERI, A. Educação afrocêntrica como via de luta antirracista e sobrevivência na Maafa. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Brasília, DF, n. 31, p. 4-17, 2019.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira. 2ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2018.
PINHEIRO MENDES, Lorraine. Minha história é suada igual dança no ilê, ninguém vai me dizer o meu lugar. Políticas Culturais Em Revista, 14(2), 122–141, 2021.