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Espelhos Des-construídos: História Natural, Interseccionalidade e Arte Contemporânea no Brasil e na Colômbia.

Embora existam diferentes significados para o que é ou foi a História Natural, em geral, ao considerar o que esteve sob esta denominação durante os séculos XVIII e início do XIX, ela se refere ao corpus constituído pelas primeiras ideias compartilhadas entre taxonomia, botânica, geologia e zoologia, com uma clara preocupação com o estudo e a ordem e organização da natureza. Está geralmente associada a ideias do Iluminismo do século XVIII que advogavam o conhecimento experimental e, portanto, envolviam o conhecimento, a exploração e a investigação direta da natureza.

No âmbito deste pensamento, tanto as explorações de territórios como as experiências com os elementos da natureza (incluindo os humanos) foram encorajadas. É também um marco de pensamento associado à expansão de impérios como os impérios britânico e francês nas Américas, Ásia e África. Desta forma, a História Natural implica um conhecimento exploratório, ordenado, sistemático e hierarquizado da natureza, no qual a Europa se constitui como centro organizador de ideias e coletor do conhecimento produzido na periferia, por meio das múltiplas explorações científicas realizadas.

Deve-se entender nestas explorações que a raça é uma construção ideológica e científica que dá legitimidade à hierarquização das diferenças humanas, um processo de elaboração no qual a cultura visual desempenhou um papel fundamental. David Bindman, Brian Wallis, Adrienne Childs e Susan H. Libby (2002) reconhecem que há uma transmissão de ideias desde a então emergente Taxonomia até a estética da beleza. Neste sentido, a visualidade é um campo que reúne discursos de História Natural e Taxonomia, e as diferenças humanas são construídas como verdades científicas e sociais, raciais e visíveis. Ao mesmo tempo, a teoria decolonial revela estreitas conexões entre a prática intelectual, o fortalecimento e apoio das elites influenciadas pelo pensamento iluminista e a formação do aparato social como um reflexo dessas hierarquias sociorraciais (SILVA, 2002).

A cultura visual dos séculos XVIII e XIX foi parte deste momento de alteridade “científica”, da construção da natureza-outra, que também incluiu a construção da humanidade-outra. Ou seja, enquanto as ciências sociais como a antropologia foram consolidadas, vinculadas à exploração geográfica colonialista, avanços em campos como a fotografia foram fundamentais para o registro dessas humanidades-outras em territórios ultramarinos, invocando seu fiel registro da “realidade”. Mesmo em 1852, a Associação Britânica para o Progresso da Ciência publicou seu Manual of Ethnological Enquiry que a fotografia era recomendada como um método objetivo de obtenção de imagens idênticas ao original” (BALANTA RODRÍGUEZ, 2012). Além disso, a gravação e a fotografia tornaram-se os mecanismos para materializar um certo orgulho imperial associado às viagens, bem como a prova científica da inferioridade dos que se encontram nas colônias (BALANTA RODRÍGUEZ, 2012). Esta associação precoce de ciência, exploração geográfica e cultura visual impulsionou a construção de ideologias colonialistas em meados do século XIX (ROGERS, 2006).

Ideias de habitantes de terras além-mar refletindo valores e comportamentos animalescos, monstruosos ou diabólicos são documentados em manuais de pintura e desenho já no século XVI. Naquela época, o manual de Iconologia de Cesare Ripa recomendava que as alegorias correspondentes à África a retratassem mostrando sua “escassez de recursos” e a associassem à uma alegoria dedicada à Luxúria (RIPA, 1593). No século XVIII, manuais de desenho como o do médico Petrus Kamper (1795) e as imagens nos textos do fisionomista alemão Johann Caspar Lavater (1775-1778) propunham uma classificação evolutiva das proporções do crânio de diferentes grupos étnicos, em clara sincronização com as ideias sistemáticas e hierárquicas da História Natural (BINDMAN, 2002). Os considerados africanos estavam mais próximos do macaco, enquanto os mais brancos estavam mais próximos do “ideal” masculino de beleza, identificado como o Apolo do Belvedere.

Esta associação entre ciência, estética, cultura visual e exploração geográfica materializou-se em extensos projetos financiados por bancos, governos e poderosas instituições universitárias, entre outros. Este artigo analisa as representações das mulheres negras em dois desses grandes projetos: A Comissão Corográfica, liderada pelo geógrafo italiano Agustín Codazzi, ativa no território atual da Colômbia; e a Expedição Thayer, liderada pelo naturalista suíço Louis Agassiz e que foi realizada no Brasil. Ambos os projetos mostram como a desumanização do corpo da mulher negra pode ser poderosa e persistente quando é revestida de caráter científico, mesmo que essas imagens em si não sejam objetos científicos (ROGERS, 2006). Rosana Paulino, uma artista afro-brasileira reage à desumanização relatada pela Expedição Thayer, criando sua poderosa série Assentamentos. Enquanto isso, Liliana Angulo encontra em um retrato de Henry Price, parte das imagens da Comissão Corográfica, um motivo para produzir um Retrato de Lucy Rengifo, recriando a dignidade tão negada no resto das imagens que fazem parte desse projeto.

Uma revisão dos projetos científicos acima mencionados nos leva a considerar uma série de aspectos que revelam as relações hierárquicas das pessoas envolvidas na produção de objetos visuais. Ambos os projetos são liderados por homens brancos europeus, cujo prestígio lhes garante o apoio financeiro de governos e instituições educacionais emergentes nas Américas. Tanto Codazzi quanto Agassiz foram educados e faziam parte de uma ampla rede científica que reproduzia as ideias sociais, geográficas e politicamente hierárquicas que atingiriam a maturidade do que veio a ser conhecido como racismo científico. Neste sentido, as imagens também seguiram um padrão que replicou estas hierarquias em sua produção, circulação, regulamentação, identificação e representação das diferenças humanas (HALL, 1997). Ou seja, a representação das mulheres negras é afetada pela hierarquia de quem encomendou as imagens, pelo uso que lhes foi dado na época, pela intencionalidade da própria produção e pelo público que as leria. Vale perguntar se essa rede, como Hall a apresenta, pode ser alterada com o tempo, se é possível, como sugerem os artistas, intervir nestas obras construídas em outros tempos e sob outros ideais, a fim de afetar sua contemporaneidade.

Agassiz, a Expedição Thyer e a Construção Visual da Negritude

Como aluno de pessoas renomadas como George Cuvier e Alexander Von Humboldt, e depois de estudar na Suíça, Alemanha e Paris, em meados do século XIX, o suíço Louis Agassiz se tornou uma das figuras mais proeminentes da História Natural, Zoologia e Geologia na Europa. Em 1847 foi nomeado pela Universidade de Harvard, onde fundou o Museu de Zoologia Comparativa de Cambridge e também se tornou um dos mais influentes cientistas dos Estados Unidos, cujo sobrenome continua a nomear ruas, prédios e centros de pesquisa neste país. Conhecido em alguns círculos como o pai da Glaciologia, Louis Agassiz foi o primeiro proponente da Teoria Glacial e também é creditado por estudos sistemáticos das geleiras como fenômenos sequenciais.

Seguindo as propostas de seu professor George Cuvier, Agassiz defendeu o criacionismo (em oposição ao evolucionismo darwiniano) e o poligenismo, defendendo, na medida do possível, mostrar como as diferentes “raças” tinham processos de criação separados (ao invés de uma criação universal ou monogênese), e que pessoas negras e brancas não tinham origem comum e, portanto, nenhuma familiaridade genética. Este intrincado sistema de crenças considerava o ser humano dividido em pelo menos oito espécies distintas, cujas origens estavam associadas a oito tipos distintos de geografia. Cada uma dessas geografias poderia ser distinguida por tipos particulares de fauna e flora (ISAAC, 1997).

Com financiamento do banqueiro de Boston Nathaniel Thayer, os objetivos oficiais acima mencionados da exploração científica estavam relacionados à coleta de amostras e imagens de fauna e flora, bem como à análise geológica do território. Entretanto, de acordo com Gwyniera Isaac, a motivação mais forte de Agassiz para iniciar a expedição Thayer, em 1865, era reunir informações que se opusessem às teorias evolutivas de Darwin. Para o naturalista, o Brasil era um território com uma geografia, fauna e flora tão particulares que só provaria a veracidade das zonas geográficas diferenciadas que ele defendia. As diferenças entre as raças e a degeneração resultante da mistura de raças também poderiam ser comprovadas através da coleta de informações que se encontrava naquele território (ISAAC, 1997).

O grupo da expedição era composto por uma dúzia de pessoas incluindo o próprio Agassiz, como líder da expedição, os estudantes que ele guiava, seu filho Alexander, sua esposa Elizabeth e um grupo de assistentes que davam suporte à comissão. Este grupo também foi apoiado pelo artista Jacques Burkhardt, o fotógrafo francês August Stahl, estabelecido no Brasil, e o assistente Walter Hunnewell (que aprendeu fotografia no Rio de Janeiro). A maioria dos desenhos e aquarelas de Burkhardt é dedicada ao registro de espécimes animais, enquanto a produção de Stahl e Hunnewell para a expedição é dedicada inteiramente a imagens de pessoas, a primeira no Rio de Janeiro, a segunda em Manaus e em outras áreas da Amazônia brasileira. Este artigo se concentra na análise das imagens feitas por Augusto Stahl, especificamente nas imagens que aparecem sob o nome “Mina Bari”.

A análise das imagens de homens e mulheres negros encomendadas por Agassiz revela que eles não faziam parte de um projeto estritamente científico, mas eram usados para legitimar a agenda de um cientista com fortes preconceitos raciais (ROGERS, 2006). Ou seja, Agassiz havia declarado sua convicção a favor da teoria criacionista poligenética, e sua viagem ao Brasil e as fotografias tiradas ali não tinham a intenção de provar suas ideias, mas de apoiá-las. Neste sentido, tanto o formato e a encenação das fotografias como as pessoas selecionadas para estar nelas fizeram parte de uma construção visual de negritude, totalmente diferente daquela destinada às pessoas brancas. Essas pessoas escravizadas fotografadas foram apresentadas por Agassiz como uma espécie distinta e primitiva em comparação com os brancos, não suscetíveis a qualquer mutação ao longo do tempo (em oposição a uma possível evolução), vindas, por sua vez, de uma geografia com condições igualmente particulares e imutáveis.

As imagens revelam o cuidadoso processo de seleção e preparação empregados por Agassiz. Primeiro, seu interesse por pessoas com escarificação é evidente (ver imagens 1,5,7,9 e 10). Enquanto Agassiz expõe isso como um sinal exótico que beira o caráter selvagem que as populações da África Oriental teriam, a escarificação vista nas imagens revela um processo de desenho cuidadoso e escarificação, preservando desenhos geométricos (vertical, horizontal, diagonal ou circular), revelando sua relevância para um coletivo (KEEFER, 2013, p. 537-553). Nas imagens mencionadas, a escarificação geralmente aparece no rosto. Entretanto, em alguns exemplos (imagens 1 e 13), também aparece no peito. Neste caso, a pessoa escravizada retratada tem suas roupas deslocadas para mostrar as marcas.

Outra representação que é mostrada como sinônimo de intencionalidade “científica” é mostrar as pessoas nuas de frente, costas e de perfil, emulando os princípios da fotografia antropométrica. Neste caso, a nudez, mais do que um símbolo de objetividade científica, enfatiza uma escassez intencional. Esta convenção da ausência de vestuário e adornos como símbolo de escassez é uma criação que, nas artes visuais, pode ser traçada desde o manual Iconologia, de pintura do século XVI, do Italiano Cesare Ripa. Neste manual, o italiano indicava a forma correta de desenhar “virtudes, vícios, paixões, artes, humores, elementos e corpos celestes […]” (RIPA, 1593), incluindo a alegoria dos quatro continentes. A elaboração deveria ser feita de acordo com suas instruções para garantir não apenas uma representação correta, mas também para preservar a hierarquia entre eles. Neste contexto, entre outros atributos, a alegoria da África deve ser representada como uma mulher de pele escura, quase ou totalmente nua porque não tem recursos abundantes (RIPA, 1593, p. 53). Estas imagens, apresentadas desta forma, oferecem uma visão do corpo da mulher negra como o de seres primitivos, despidos e desprotegidos. Se a análise da nudez de Agassiz seguisse um método científico, ele consideraria imagens semelhantes para homens e mulheres brancos como parte de seu estudo. Isto, é claro, não é o caso, portanto tais imagens não fazem parte das imagens que acompanham os relatórios da expedição.

Graças aos testemunhos de William James (compilados por Gwyniera Isaac), que também fazia parte do grupo expedicionário, também sabemos que tal nudez, pelo menos no caso das populações indígenas de Manaus, foi elaborada por Agassiz e seus assistentes. Em um de seus diários de campo descrevendo suas atividades enquanto estava em Manaus, James relata como encontrou Hunnewell durante a complicada tarefa de dominar a fotografia enquanto as pessoas, que ele acabava de conhecer, usavam suas roupas e seus perfumes no lugar onde viviam, e eram persuadidas a posar sem roupas sendo classificadas como indígenas. James afirma que mais tarde seria revelado que, apesar da insistência e elaboração para fazê-los passar por indígenas puros, alguns deles eram na verdade mestiços (descendentes de indígenas e portugueses brancos) (ISAAC, 1997, p. 7).

A análise comparativa de algumas das imagens armazenadas no Peabody Museum revela que, de fato, como James descreve em Manaus, as mulheres negras fotografadas no Rio de Janeiro por Stahl não viviam nuas, mas foram despidas para as fotografias. A descrição apresentada no museu para a Fig. 1 refere-se à mulher fotografada com roupas como “Mina Bari”, que é a mesma descrição que aparece para a mulher fotografada depois, dessa vez nua. O mesmo caso é repetido para as mulheres nas Figs. 9 e 10 (Mina Nago), e Figs. 13, 14 e 15 (Mina Tapa). Estas representações das mulheres de meio corpo aludem mais a uma representação “exótica” de mulheres negras como tipos, como seres anônimos, do que a um desejo de retratá-las. Este tipo de imagens também foi produzido e comercializado por outros fotógrafos no Brasil, como José Christiano Junior e Alberto Henschel, com o objetivo de serem vendidas como souvenirs para viajantes que exploram o território, ou para serem exportadas para outros lugares habitados por pessoas ansiosas para conhecer o exótico tropical das Américas.

Os corpos de mulheres negras sob a direção de Agassiz sofrem, como diz Beatríz Balanta, uma tripla transformação no estúdio fotográfico: são transformados em um espécime científico, envoltos em uma negritude artificial e depois negociados como uma mercadoria (BALANTA RODRIGUEZ, 2012). Esta tripla transformação visual alcançada nestas fotografias contrasta com as imagens do grupo expedicionário e do próprio Agassiz, exibindo seus melhores trajes e fazendo uso dos recursos que o estúdio fotográfico poderia oferecer. (ver Figs. 11 e 12). Ou seja, graças a esta construção da negritude, as mulheres negras constituem “the ultimate other” (NELSON, 2010) no grupo social, a oposição direta àqueles que seriam então os homens dominantes, brancos, ocidentais, livres e com pensamento iluminista: uma espécie absolutamente separada das outras, por seu gênero impulsivo, por sua raça primitiva, por sua carência naturalizada e por seu corpo mercantilizado.

Esta agenda da construção da negritude iniciada por Agassiz no Brasil também ocorreu no Sul dos Estados Unidos, nas plantações da Carolina do Sul, em 1850. Naquela época, o naturalista selecionou as pessoas negras que ele considerava de “interesse científico” e encarregou seu amigo, colega e tutor, Robert Gibbes, de levá-los ao daguerreotipista Josepth Zealy, que produziu a série de daguerreótipos, que, como as imagens da expedição Thayer, agora estão no Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard. As imagens de Zealy também mostram homens e mulheres negros nus e seminus nus de frente, de perfil e de costas, assim como as poses nas fotografias de Stahl. Suas expressões dramáticas e a dor de ver estas imagens tem sido objeto de estudo e reelaboração da artista Caree Mae Weems, que criou a série From Here I Saw What Happened and I Cried.

Figura 1 Figura 1 Legenda

Augusto Stahl. Mina Bari. C. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 2 Figura 2 Legenda

Augusto Stahl. Retrato de mulher; Frontal; Perfil e Costas (Mina Bari). c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 3 Figura 3 Legenda

Augusto Stahl. Mina Ondo. c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 4 Figura 4 Legenda

Augusto Stahl. Mina Nago. c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Rosana Paulino e Assentamentos

Como Carrie Mae Weems, Rosana Paulino, uma artista afro-brasileira contemporânea, também sofre com o impacto causado pela violência das imagens criadas por Agassiz. A artista viu pela primeira vez as fotografias reunidas no texto de George Ermakoff: O Negro na Fotografia Brasileira do Século XIX. Em suas descrições em A Journey to Brazil, Agassiz descreve como caravanas de homens e mulheres negros seminus saúdam o grupo expedicionário com danças e sorrisos em cada uma das cidades que visitam. No entanto, as imagens no relatório estão longe de mostrar essa alegria e vontade de serem fotografadas dessa forma. Sua expressão sombria lembra a das pessoas nas imagens de Zealy tiradas na Carolina do Sul quinze anos antes. Não há intenção de exaltar a humanidade, a atuação, a inteligência das pessoas expostas.

Assentamento é uma intervenção crítica no olhar e na memória coletiva. A artista procura destacar e protestar contra a desumanização da mulher negra nestas imagens, além de resgatar e mostrar sua dignidade, sua cultura e a grande contribuição da mulher negra para a construção da sociedade brasileira. Ou seja, a artista está mostrando como a ciência tem desempenhado um papel fundamental para ocultar a enorme contribuição das populações negras à sociedade brasileira, e como esta ocultação continua a afetar tal reconhecimento e a vida dos afro-brasileiros contemporâneos. Para isso, Paulino intervém na mesma imagem encontrada na compilação de Ermakoff, para “mudar a chave” e mudar essa ideia negativa sobre as mulheres negras, usando “fogo contra fogo” nesta intervenção. A artista afirma que “para curar todo o mal causado por estas imagens que violaram a dignidade da população negra, as mesmas imagens devem ser usadas para mudar a chave, trazer dignidade e mostrar que estas pessoas contribuíram para a construção de um país” (PAULINO, 2021).

A matéria-prima de Assentamento são as mesmas imagens de Agassiz, especificamente, aquela rotulada “Mina Bari” (Fig. 2), na qual a mulher está nua de frente, de perfil e de costas. Paulino pega precisamente esta representação pseudocientífica e a reordena de diferentes maneiras em diferentes escalas. A primeira é uma litografia colorida sobre papel, ressinificando a imagem de “Mina Bari”, na qual ela aparece de costas (ver Fig. 16). É uma reproposta que parte da individualidade negada das mulheres negras e se torna um reconhecimento coletivo de sua participação nos próprios fundamentos da sociedade brasileira. Paulino enfatiza este enraizamento coletivo pelo uso da mesma cor azul que alude ao mar que testemunhou a viagem enfrentada pela população negra como resultado do tráfico de pessoas escravizadas no Atlântico. A espiritualidade das populações negras, inicialmente exercida clandestinamente, a música e a cultura de origem africana são contribuições culturais ao território brasileiro para o qual foram levadas. A migração violenta, a colonização e a importância para a cultura nacional são colocadas por Paulino no mesmo movimento de cor azul.

Uma segunda instância de ressignificação ocorre novamente por meio de outra litografia em papel que questiona e reconceitualiza o papel da maternidade da mulher negra. Por um lado, destaca o ultraje dos corpos negros a que as mulheres negras foram submetidas durante a escravização, enquanto, por outro lado, lembra mais uma vez como este trabalho forçado (entre muitos outros) tornou possível a reprodução de uma força de trabalho que acabou ajudando a construir vilas e cidades em território brasileiro. Mais uma vez, Paulino pede o reconhecimento das contribuições para a cultura e os fundamentos da identidade nacional. Em uma entrevista, ela recorda que se o samba é a dança nacional (e sua exaltação move grandes quantidades de dinheiro pelas indústrias culturais brasileiras), é graças à presença e às contribuições culturais do povo negro (PAULINO, 2021).

Finalmente, e nas próprias palavras de Rosana, a obra cresce. O ano de 2013 viu a instalação de Assentamento como uma instalação. A mulher catalogada como Mina Bari, agora em tamanho real, está de frente para o espectador. Sua imagem impressa digitalmente em tecido foi fragmentada e reordenada de forma imperfeita. Os pedaços de tecido foram unidos com costuras de fio preto grosso, cujas bordas pendem da costura/cicatriz que unem as partes da mulher. Um coração bordado com fios vermelhos e pretos sangra, lembrando a humanidade, a violência, as feridas e o sofrimento vividos durante o tráfico de pessoas escravizadas. A (s) mulher (es) violentada (s), fixada (s) à força em um novo território, se reorganiza (m) de forma imperfeita e sobrevive (m). Nos lados da imagem e em cima de palets, a artista coloca o que parece, à distância, ser lenha a ser queimada, mas são braços negros tão rígidos que parecem pedaços de madeira fossilizada, amarrados juntos como se estivessem formando uma pilha pronta para ser acesa. Ao lado, imagens do mar são projetadas em telas digitais, evocando imagens de braços que uma vez estiveram erguidos, tentando se levantar e vencer a morte inevitável no mar.

Assentamento é um projeto que começou em 2012, com as primeiras litografias coloridas em papel. Nelas Paulino denuncia que essas imagens foram maquiadas e revela o que se pretende esconder: que as mulheres negras foram forçadas a permanecer no território americano e, apesar disso, criaram raízes e contribuíram com suas ideias, seus pensamentos, sua espiritualidade para transformar o Brasil no que é hoje. Banhadas pelos mares que testemunharam a viagem forçada, a dor de serem escravizadas, estas mulheres usaram estas experiências para literalmente dar à luz o futuro do país. A gravidez do Assentamento 2 transforma a foto de perfil desnaturalizado em uma lembrança de homens e mulheres negros que, ao mesmo tempo, faziam parte de uma construção intergeracional do país pelo mesmo grupo étnico.

Apesar deste forte protesto contra estas construções “legalmente racistas” da História Natural a respeito das mulheres negras, não é intenção da artista intitular-se uma Ativista ou Artivista. Assentamento reflete as construções visuais racistas das mulheres negras legitimadas pela ciência no século XIX, e como elas afetam a realidade contemporânea das mulheres negras; esta reflexão está intrinsecamente ligada à construção da identidade de Paulino, sendo ela mesma uma mulher negra. Seu trabalho tem uma voz poderosa, o que, para a artista, representa um ato de sobrevivência, não de rotulação. Sendo uma mulher negra, ela acredita que seu trabalho deve ser feito, pois não há outra opção para comunicar sua mensagem, na linguagem, escala e métodos necessários, independentemente dos nomes e rótulos em voga (PAULINO, 2021). Desta forma, Assentamento é um projeto em movimento que muda de escala e se torna uma instalação em 2013, porque, para Paulino, é necessário que a humanidade da mulher negra seja ampliada, ressignificada, mesmo que este processo implique uma cicatriz.

Da mesma forma que ocorre para artistas como o cubano Juan Roberto Diago, para Paulino esta cicatriz forma um queloide, que ressignifica a história das populações negras trazidas à força para o território americano para serem exploradas. Diago representa o queloide por meio da marca de solda grossa no metal. Para Paulino, este queloide é representado pela costura, invocando, desta forma, os ofícios aprendidos em casa, como faz em outras de suas obras. Esta marca, este queloide que evidencia a história da violência e que também dá a ela outro significado, torna-se, como a escarificação de “Mina Bari”, uma marca de identidade das mulheres negras. É necessário mostrar, é necessário denunciar, mas também é necessário ressignificar a dor infligida aos corpos, para entender que, apesar das múltiplas formas de violência, continuamos a existir neste território e continuamos a contribuir para a construção das nações latino-americanas. Mas é sempre necessário chamar a atenção para esta contribuição, para mostrar este queloide, para costurar esta história em uma linha que torna visível esta reconstrução imperfeita.

Rosana nos convida a ver estas imagens com pesar, com raiva, com os olhos bem abertos e participantes desta narrativa que desvenda as artimanhas do racismo científico. É impossível conhecer as condições específicas sob as quais a imagem foi feita ou da vida de sua modelo, da qual só sabemos que foi identificada por Agassiz ou Stahl como “Mina Bari”. Mas é possível assumir uma observação ativa e denunciadora da dor manifesta, como Paulino sugere em seu trabalho (CARVALHO, 2008, p. 7). Daí se dá a denúncia, por exemplo, de uma perspectiva intersetorial, da suposta harmonia racial do Brasil como uma falácia; apontando também a clara discriminação racial e de gênero enfrentada pelas mulheres afro-brasileiras; e delatando as implicações de tal discriminação na vida cotidiana dessas mulheres.

Figura 5 Figura 5 Legenda

Augusto Stahl. Mina Nago. c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 6 Figura 6 Legenda

Retrato de Warren. 1860. Louis Agassiz. HUP. Louis Agassiz (13), olvwork272187. Havard University Archives

A Comissão Corográfica e a Imagem da Mulher Negra

A Comissão Corográfica, que ocorreu entre 1850 e 1859, sob a direção do engenheiro italiano Agustín Codazzi, foi um projeto de exploração científica da Colômbia, um país novo na época. Foi realizada para conhecer e reconhecer a geografia física e humana, além de mapear os territórios do novo país independente. Estas guerras de independência mostraram que a antiga colônia já era um território fragmentado, cuja heterogeneidade era clara na forma como enfrentava os aspiradores de poder, como respondia à primeira e segunda fases das guerras de independência, inclusive com claras diferenças quanto a quais lados apoiar. Portanto, um empreendimento que visasse conhecer as populações e os territórios era necessário para que fossem tomadas ações em busca dessa unidade.

Planejada como uma empresa de exploração científica, a Comissão incorporou os métodos e instrumentos de levantamento de seus antecessores, ajustando-os de acordo com as demandas e privações do território, algo que Codazzi já havia aprendido a fazer durante sua exploração do território venezuelano ao lado. Esta experiência prévia se refletiu no uso de informantes e tradutores locais durante toda a expedição, complementada por histórias sobre a região sempre que as condições de campo tornavam certos locais completamente inacessíveis à exploração.

Agustín Codazzi, diretor da Comissão, foi herdeiro das teorias e métodos de medição, observação e exploração de Alexander Von Humboldt, que viajou pelas Américas entre 1799 e 1804. Von Humboldt foi educado sob as ideias do Iluminismo por alguns dos mais renomados teóricos alemães, incorporando em seu conhecimento as primeiras construções em torno da Taxonomia de Linnaeus e as teorias europeias de raça, clima e humor da História Natural, tais como as promovidas por Johann Friedrich Blumenbach (NIETO OLARTE, 2010).

Isto é importante para entender como, sob a bandeira da objetividade científica, as imagens, mapas e informações coletadas no âmbito da Comissão constituíram a base sobre a qual as primeiras políticas territoriais do país foram construídas, e de que forma tiveram um impacto substancial na construção de um imaginário nacional. No seu texto, Mapping the Country of Regions, Nancy Appelbaum (2016) argumenta que, apesar do ideal de unidade que precedeu o planejamento da Comissão, os resultados mostram um país racial e territorialmente diverso, cuja documentação reflete os preconceitos raciais dos que participaram do empreendimento. Com base nessas informações, que foram parcialmente afetadas pelo preconceito racial, foi introduzida uma série de leis que favoreciam territórios com uma população majoritariamente branca e branca-mestiça nas terras altas da região andina central, em detrimento de territórios com uma população majoritariamente indígena e afrodescendente na periferia.

A raiz destas construções tem relação com uma abordagem baseada na História Natural que atribuiu certos comportamentos, humor e valores a cada raça e gênero. “Homens de Ciência” levariam em conta a temperatura, umidade e pressão atmosférica dos territórios como fatores que afetam o humor das diferentes raças no então Vice-reinado de Nova Granada (NIETO ORLARTE, 2009). Isto é, embora a Comissão Corográfica tenha ocorrido quando o país era independente do poder espanhol, as ciências ainda eram influenciadas tanto pela supremacia do conhecimento europeu quanto por aqueles homens brancos de elite que, educados sob um regime colonial, se apropriaram deste conhecimento de hierarquização racial.

Essas ideias, no entanto, não são encontradas de forma homogênea na Comissão. Na verdade, Nancy Appelbaum encontra discrepâncias entre as aquarelas produzidas e os mapas e relatórios escritos apresentados, especialmente na região de Antioquia. Enquanto as imagens produzidas por Henry Price mostram uma diversidade de população que inclui homens e mulheres negros, indígenas e pardos, o relatório fala de uma concentração de populações de brancos e mestiços brancos, cuja raça (e valores associados de bons trabalhadores) garantiria o progresso de tal área. Esta é, de fato, uma construção que sobrevive até os dias de hoje. A região de Antioquia e a cidade de Medellín estão representadas no imaginário nacional como regiões com uma população exclusiva ou principalmente branca. Daí a importância de Retrato de uma negra de Henry Price.

Figura 7 Figura 7 Legenda

Rosana Paulino. Assentamento. Litografía a color sobre papel.76,0 x 57,0 cm. 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC USP

Figura 8 Figura 8 Legenda

Rosana Paulino. Assentamento. Impressão digital sobre tejido, bordado, linoleo, costura.180,0 x68 cm. 2013. Fonte: Rosana Paulino

Henry Price, Retrato de uma mulher negra (1852)

Há nove imagens representando mulheres negras entre as mais de duzentas imagens que compõem a Comissão Corográfica. Entre estas nove, as imagens de Henry Price de mulheres negras parecem mostrá-las de uma maneira diferente, mais central, mais como protagonistas da cena, e mais desafiadoras ao olhar o espectador (ver Fig. 19). Entretanto, Retrato de uma mulher Negra marca definitivamente um afastamento da linguagem visual na qual a Comissão retrata as mulheres negras e lhes confere um status que dificilmente pode ser igualado por qualquer outra imagem da Comissão (ver Fig. 19).

O formato de retrato escolhido para a imagem já fala da necessidade de individualidade da pessoa que está sendo representada. A mulher está sentada e ricamente vestida com uma saia de algodão possivelmente solta e longa que cobre seus pés e cujo volume ocupa quase a metade do plano frontal da composição. Ela usa uma blusa com imagens gravadas e um manto laranja com bordado de flores nas extremidades. Ela usa joias em seu cabelo e um colar e candongas douradas, em suas mãos está um lenço branco, aberto e amarrotado. Seus olhos olham diretamente para o espectador.

É possível que Price tenha seguido as abordagens da pintura de tipos humanos do século XIX e que este retrato tenha sido produzido como uma imagem exótica de uma mulher negra em Antioquia? A representação de Price sem dúvida compartilha alguns elementos dos cartões postais produzidos pelo fotógrafo Christiano Junior, da segunda metade do século XIX, no Brasil, produzidos com o objetivo de serem exportados como lembranças, testemunhos visuais do exotismo racial deste país. Também compartilha elementos com algumas das imagens produzidas por Pancho Fierro no Peru em meados do mesmo século. O anonimato da modelo, que é referido como um espécime de sua raça (uma mulher negra), também é indicativo desta representação que nega a individualidade e exotiza a coletividade. Também é verdade que as imagens das mulheres negras produzidas por Price no âmbito da Comissão diferem das produzidas por seus colegas exploradores, especialmente as de Manuel María Paz, o que não significa necessariamente que a imagem de Price procure elevar as mulheres negras que ele retrata ou que procure subverter a ordem hierárquica racial predominante da época. Entretanto, para a artista Liliana Angulo é particularmente intrigante que Henry Price tenha pintado o Retrato de uma mulher Negra no ano de 1852, que é reconhecido e celebrado na história colombiana como o ano em que a escravização do povo foi definitivamente proibida no país. Este fato desperta seu interesse e a leva a investigar mais sobre este trabalho.

Figura 9 Figura 9 Legenda

Henry Price. Retrato de uma negra (Província de Medellín), 1852.

Figura 10 Figura 10 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 11 Figura 11 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 12 Figura 12 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 13 Figura 13 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 14 Figura 14 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 15 Figura 15 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Liliana Angulo e o Retrato de Lucy Rengifo

O passado sempre esteve presente no trabalho de Liliana Angulo. Seu primeiro projeto, “Un Negro es un negro”, levou mais de cinco anos e incorporou várias produções. Em Porteadores (Carregadores), sua preocupação com imagens fotográficas da segunda metade do século XIX e início do século XX, nas quais são retratados os africanos prestes a serem enviados para outros territórios, carregando objetos que seriam comercializados, assim como seus corpos, é evidente. Na série Negra Menta e Negros Utópicos, Angulo exagera as características de seu rosto, em um black-face intencional, e se veste com tecidos usados para fazer toalhas de mesa e cortinas de cozinha; mostrando o paradoxo de essencializar os papéis das populações negras para a ocupação doméstica, ao mesmo tempo em que assume sua felicidade total e absoluta em tal aprisionamento. Tanto as imagens que negam a atuação do povo africano e afrodescendente quanto as construções estereotipadas contemporâneas fazem parte de “Un Negro es un Negro“, cujo objetivo era justamente evidenciar a desumanização e o roubo da atuação do povo negro nessas imagens, além de refletir sobre as implicações atuais dessas imagens na construção do que é um afrodescendente, seu lugar e papel na sociedade colombiana contemporânea.

Após cinco anos realizando este projeto, a artista procura outros horizontes que, desta vez, justifiquem a atuação das pessoas negras. Foi assim que ela chegou ao Retrato de uma Negra, de Henry Price, e planejou fazer o Retrato de Lucy Rengifo (ver imagens 20-26). É uma das primeiras obras de seu longo projeto “Presencia Negra”, no qual Angulo procura precisamente mostrar mais da atuação de pessoas de ascendência africana, sua representação e sua contribuição em projetos visuais e científicos e para a construção do país. Seu trabalho atual, Un Caso de Reparación Histórica, explora as contribuições de pessoas negras livres e também as escravizadas para o projeto de Expedição Botânica liderado por José Celestino Mutis, entre 1783 e 1816, em Nova Granada. Neste sentido, vemos que, tanto para Angulo como para Rosana Paulino, existe uma forte necessidade de influenciar a memória visual histórica por meio de sua intervenção artística. Apontar e destacar a contribuição das comunidades negras para a construção dos países em que vivem torna-se um fator motivador fundamental para a produção de suas obras.

No caso de Retrato de Lucy Rengifo, é uma recriação que a artista considera necessária com base em sua própria realidade. Liliana Angulo conheceu Lucy Rengifo na Universidad de los Andes, ela estava cursando sua graduação em Estudos Políticos e Angulo estava fazendo alguns cursos de Antropologia na mesma Universidade, na cidade de Bogotá. Rengifo e Angulo foram as únicas mulheres negras nos cursos dos quais participaram, o que despertou o interesse da artista. Quando se conheceram, Liliana Angulo descobriu que Rengifo nasceu e cresceu na cidade de Medellín, a mesma cidade onde o retrato de Price foi pintado (ANGULO, 2021). A raça e a localização territorial são de interesse significativo, tanto no trabalho de Price como na história particular de Rengifo; pois, no imaginário nacional colombiano, Medellín é uma cidade identificada como sendo habitada principalmente por brancos e mestiços; e, portanto, não é reconhecida coletivamente como uma cidade habitada por afro-colombianos, ainda que seja.

Ao invés de uma reação, Liliana Angulo descreve seu trabalho como uma “reencenação” do trabalho de Price. Em um exercício semelhante ao de Saidija Hartman (2008, p. 1-14), ao auscultar e sobretudo questionar o arquivo, Angulo se pergunta quem poderia ser essa mulher. Além de supor que seja uma pessoa escravizada, adornada pelo mérito de algum patrono, a partir do formato de retrato escolhido pelo aquarelista e da forma desafiadora como foi pintada, Angulo se pergunta se ela é uma figura proeminente na sociedade antioquina. Como Hartman, a artista levanta questões que o arquivo disponível não resolve: “Será que ela já era uma pessoa livre? Teria comprado sua liberdade? Essas joias eram de ouro? Será que ela era dona de pessoas escravizadas (como mostraram os textos da época)?” (ANGULO, 2021). Angulo entende que é difícil saber mais sobre a mulher que Price pintou, cujos olhos fixam-se diretamente no espectador, sem a submissão que está impressa nos olhares do povo africano nas fotografias dos carregadores nas costas africanas do século XIX.

Quanto ao fato de ser um retrato, Angulo pergunta: Quem era essa mulher negra para merecer tal tratamento na época? Ao invés de ignorância ou inocência com respeito aos cânones de representação de meados do século XIX, Angulo nos convida a rejeitar a falta de representação de pessoas escravizadas nas imagens que nos são apresentadas. Em vez disso, por meio de uma recreação visual (uma fabulação visual crítica, para usar as palavras de Saidija Hartman), nos permite especular criticamente sobre outras realidades, outros mundos possíveis para aquelas mulheres cujas vidas desconhecemos. O retrato de Lucy Rengifo, assim, com seu próprio nome, nos permite levantar visualmente estas especulações.

Lucy Rengifo é ela mesma em seu século XXI: uma mulher negra, nascida em Medellín, cientista política, assessora de diferentes entidades e ocupante regular de espaços em sua maioria brancos. A Lucy Rengifo real não nos dará respostas sobre a mulher negra pintada por Price, mas a recriação proposta por Liliana Angulo, que resgata a pintura de Price do anonimato, abre a porta para múltiplas questões, que, a partir do raciocínio de Angulo, nos convidam a pensar sobre a atuação das pessoas negras, apesar das circunstâncias adversas em que viveram. Isto não significa disfarçar a realidade de seus contextos, mas sim resistir à imposição de imagens validadas por uma suposta objetividade científica, que anunciam uma negritude sem voz. Ela nos convida a não ceder às pretensões de tais construções e a tentar fabricar criticamente suas posições nas sociedades e as estratégias para sobreviver a elas. Desta forma, seguindo as diretrizes propostas por Angulo, o retrato de Lucy Rengifo lança uma reflexão de três maneiras: primeiro, expande e complica o espectro de representações da afrodescendência consideradas para o século XIX; segundo, lança uma reflexão de passado presente entre raça, gênero e região; e, finalmente, explora as construções de identidade das mulheres negras contemporâneas.

Como parte do Retrato de Lucy Rengifo, a artista realizou atividades com lideranças femininas na cidade de Medellín, em Antioquia. Graças a um convite do Museu de Antioquia, Angulo dialoga com essas lideranças e as questiona sobre suas impressões sobre o retrato de Price. Além das discussões que surgem nessas reuniões, há oficinas nas quais são incorporadas imagens de família e são feitos cartazes que intervêm nos espaços onde elas vivem na cidade de Medellín. Estes cartazes incorporam as frases que surgem nas discussões, levando às ruas da cidade questões sobre raça e etnia, algo que raramente é discutido em uma cidade que nega a presença de cidadãos afro-colombianos.

Figura 16 Figura 16 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 17 Figura 17 Legenda

Henry Price. Retrato de una negra (Provincia de Medellín), 1852.

Uma conclusão

Desde o século XIX temos testemunhado uma amálgama de ciência, exploração geográfica, diferenciação humana e cultura visual. O conhecimento científico é cooptado por elites instruídas pelo pensamento iluminista e utilizado para legitimar as construções visuais racializadas. Não é fortuito que, ao rastrear as influências dos líderes da expedição estudados, Agustín Codazzi e Louis Agassiz, ambos nos levem às abordagens de Alexander Von Humboldt, George Cuvier e Karl Linnaeus. Homens brancos e europeus modelando a natureza de uma forma hierárquica. Neste contexto, as mulheres negras são construídas como sujeitos primitivos, inferiores, impulsivos, opostos perfeitos destes homens brancos ocidentais que ao mesmo tempo encomendam as imagens que as representam. Uma vez estabelecidas na linguagem visual, essas imagens afetam as realidades das mulheres negras contemporâneas. Então, o que pode ser feito em resposta a isso?

Rosana Paulino nos convida a redefinir as próprias imagens que desumanizam as mulheres negras. Sua resposta envolve uma intervenção que denuncia a violência dessas imagens, apontando sem rodeios os pecados de seus criadores e as consequências na vida cotidiana de mulheres iguais a ela. Mas este protesto também nos convida a lembrar a inestimável contribuição que as mulheres negras fizeram para a construção das nações latino-americanas, e do Brasil, em particular. Estas imagens não só desumanizam, mas também subestimam a atuação das populações negras na resistência à violência contínua, assim como sua participação na construção da nação.

Por sua vez, Liliana Angulo recria um trabalho que ela considera merecer atenção especial. Através de Retrato de Lucy Rengifo, a artista recria e faz perguntas à aquarela de Henry Price, Retrato de uma Negra (1852). Semelhante à fabulação crítica de Saidija Hartman, Angulo propõe questionar imagens com uma intencionalidade diferente, de modo a considerar outras realidades que levam em conta a atuação das mulheres negras. É verdade que o exercício de denúncia deve ser realizado, mas, dado o desgaste que gera, é válido examinar criticamente o arquivo em busca daquelas ações que revelam a vontade das populações negras, apesar da opressão a que foram submetidas.

Ambas os artistas intervêm de maneiras diferentes nas imagens do passado que lhes causam inquietação. Enquanto Paulino enfatiza a denúncia da violência e a exaltação da participação na construção da sociedade; Angulo propõe uma busca insistente dos traços que revelam a atuação das populações negras. As duas artistas concordam sobre a necessidade de influenciar a memória visual coletiva, lembrando ou escavando as evidências da participação ativa das comunidades negras nos grandes projetos que definiram os fundamentos das nações. Tais reflexões são inseparáveis de suas realidades como mulheres negras que habitam geografias que as negam, além de frequentarem espaços nos quais são minorias.

Referências

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Figura 1 Figura 1 Legenda

Augusto Stahl. Mina Bari. C. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 2 Figura 2 Legenda

Augusto Stahl. Retrato de mulher; Frontal; Perfil e Costas (Mina Bari). c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 3 Figura 3 Legenda

Augusto Stahl. Mina Ondo. c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 4 Figura 4 Legenda

Augusto Stahl. Mina Nago. c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 5 Figura 5 Legenda

Augusto Stahl. Mina Nago. c. 1865. Fonte: Rosana Paulino

Figura 6 Figura 6 Legenda

Retrato de Warren. 1860. Louis Agassiz. HUP. Louis Agassiz (13), olvwork272187. Havard University Archives

Figura 7 Figura 7 Legenda

Rosana Paulino. Assentamento. Litografía a color sobre papel.76,0 x 57,0 cm. 2012. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC USP

Figura 8 Figura 8 Legenda

Rosana Paulino. Assentamento. Impressão digital sobre tejido, bordado, linoleo, costura.180,0 x68 cm. 2013. Fonte: Rosana Paulino

Figura 9 Figura 9 Legenda

Henry Price. Retrato de uma negra (Província de Medellín), 1852.

Figura 10 Figura 10 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 11 Figura 11 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 12 Figura 12 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 13 Figura 13 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 14 Figura 14 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 15 Figura 15 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 16 Figura 16 Legenda

Liliana Angulo. Retrato de Lucy Rengifo. Projeto “Presencia Negra”. 2007.

Figura 17 Figura 17 Legenda

Henry Price. Retrato de una negra (Provincia de Medellín), 1852.