Um lugar de afeto. De cura. De expressão de emoções. Um lugar de elaborar conexões que divergem do racionalismo ocidental. Isso cabe em um espaço acadêmico? Cabe em um museu de arte? Se o webinário de pesquisa MAC USP Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas não determinou uma resposta, apontou caminhos e possibilidades. Com o objetivo de colocar em debate pesquisas acadêmicas e curatoriais relacionadas à temática proposta, a semana de encontros foi capaz de criar um ambiente fértil, muito mais poderoso do que o modelo institucional poderia dar conta.
O ambiente acadêmico é o lugar onde os conhecimentos são legitimados e, por meio de diversos desafios impostos, decide-se quem pode falar. É esse o espaço onde são decididos os cânones. A cada narrativa atribuída de poder, muitas outras foram caladas. De acordo com Grada Kilomba, o espaço acadêmico, assim como “conceitos de conhecimento, erudição e ciência estão intrinsecamente ligados ao poder e à autoridade racial” (KILOMBA, 2019, p. 19). Essa autoridade racial é, naturalmente, a branca. Tal hierarquização serve, sistematicamente, para negar o privilégio da fala para pessoas racializadas.
Partindo dessas questões, sinto a necessidade de pontuar que, durante toda a minha trajetória institucional, como graduanda em História da Arte na Escola de Belas Artes e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, ambos na UFRJ, nunca tive uma professora ou professor que não fossem brancos. Encontrar alternativas sempre foi um esforço independente, em formações complementares. É nesse fato que reside a importância desse webinário, que trouxe, pela primeira vez na trajetória de muitos dos estudantes de pós-graduação participantes, a experiência de participar de um percurso formativo composto majoritariamente por professores, pesquisadores, artistas e curadores negros em uma instituição universitária.
Nos últimos anos, com a implementação cada vez maior de ações afirmativas nos cursos de pós-graduação, vêm-se modificando as pesquisas não apenas em temáticas abordadas, mas em princípios epistemológicos e formas de transmissão de saberes que não têm mais a Europa como centro. A ampliação do conhecimento sobre (ou a partir de) povos africanos e afro-diaspóricos ou nativos das Américas, com seriedade e compromisso com a luta antirracista, é um processo que não pode ser mais interrompido ou revertido. Não se trata mais de políticas paternalistas de uma elite branca, mas, sim, de uma verdadeira articulação política de pesquisadores comprometidos. Essa é uma constatação à qual todas e todos pudemos chegar por meio da ação do MAC USP.
Foi mencionado, mais de uma vez, o fato de esse espaço ter se transformado numa espécie de quilombo. Um espaço seguro, de resistência, conduzido majoritariamente por pessoas negras, mas contando também com a presença de pesquisadores brancos aliados, que partem de saberes afro-diaspóricos para conduzir suas pesquisas. Nesse sentido, foram possíveis trocas que fugissem da austeridade exigida pelos protocolos acadêmicos. Em vários momentos, a emoção transpareceu entre as falas, seja o receio de atender às expectativas que um momento tão especial parecia exigir, a felicidade de estar entre os seus e perceber como as conexões entre as pesquisas ultrapassavam as referências teóricas, alcançando camadas muito mais profundas de vivências diaspóricas, a gratidão presente em muitas falas, nas quais foram lembrados todos os profissionais envolvidos para que essas ações fossem possíveis, ou o alívio de vislumbrar futuros possíveis, mesmo em meio a tantos ataques, velados ou não, que vivemos em diferentes espaços da sociedade. Entendemos que em nosso quilombo há, sim, espaço para que expressemos todas as nossas emoções, porque elas também fazem parte da intelectualidade que reivindicamos, que passa por todas as camadas de nossa existência, e não por uma racionalidade que pretende ser objetiva, como exigido pelos centros de conhecimento conduzidos pela branquitude.
Como pesquisadora que trata das fronteiras da arte como ferramentas da colonialidade, por meio da hierarquização de produções artísticas a partir de instituições, muito me interessaram as pesquisas que propunham uma retomada da capacidade de agência de indivíduos que sempre foram colocados como objeto de estudo, de fetiche ou de representação, nunca como sujeitos detentores das próprias narrativas e olhares sobre o mundo. Desnaturalizar a lente que as colonialidades do poder, do ser, do saber e cosmogônica, como pontuou a pesquisadora Mônica Lima, a partir de Aníbal Quijano, faz que percebamos como fomos atingidos nas camadas mais subjetivas de nossa existência. É a partir de ações de choque, aos nos depararmos com tudo o que foi velado, e retomada, num processo do resgate das memórias que nos pertencem, que podemos nos voltar para a elaboração de futuros possíveis.
Essas fronteiras também são tensionadas pelas produções apresentadas pela artista e pesquisadora Renata Felinto, que, a partir da investigação do trabalho de mulheres negras, algumas invisibilizadas pelo sistema de arte ao serem limitadas aos circuitos das artes populares ou naïf, como Ana Leopoldina dos Santos e Madalena dos Santos Reinbolt, trazendo no elo entre a vida e a arte, na educação informal, na conexão com suas ancestralidades, as possibilidades de edificar sonhos e destruir pesadelos. Raquel Trindade, também compondo o grupo apresentado, circulando por outras dimensões do sistema de arte, parte das múltiplas habilidades artísticas para incorporar uma forma de pensar Brasil que questionava a visão hegemônica, questionando, por exemplo, o mito da democracia racial. Essa questão tem entre uma de suas maiores críticas uma antropóloga, mulher preta. Lélia Gonzales entende que esse discurso, incorporado à identidade nacional, não é visibilizar a “efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro e do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles” (GONZALEZ, 2020, p. 204).
Por meio da produção dessas mulheres e da análise biográfica de suas trajetórias, Renata Felinto abordou a forma como questões de raça, classe, gênero e territorialidade impactam o acesso à arte e à produção de arte. São trabalhos que, até então, não costumavam ser exibidos em exposições que têm o intuito de fazer um panorama da produção artística feminina. Um ponto crucial tocado pela artista, que se conecta com toda a proposta desse webinário de pesquisa e com a dimensão que abordo neste relato, é o fato de que o processo de empoderamento não é individual, sendo necessário, portanto, para nós, mulheres negras, estarmos inseridas em uma rede de artistas, para que possamos vislumbrar as possibilidades de viver de arte, algo que, historicamente, nos tem sido negado.
Por fim, entre as contribuições valiosas de todas e todos os pesquisadores presentes, outra questão que se conecta com minhas investigações foram as possibilidades de o museu olhar para si mesmo e enxergar a possibilidades de deixar de ser uma ferramenta a serviço da colonialidade, questão levantada por Renata Bittencourt no encontro final, no qual os estudantes de pós-graduação presentes, divididos em grupos, puderam dialogar e fazer o importante exercício de conectar ideias, pensar coletivamente.
Quando pensamos em relações de poder, principalmente no campo das artes visuais, temos os museus como grandes legitimadores de discursos que se apresentam a partir de seus acervos. Embora, historicamente, tenham servido para apresentar visões apaziguadoras da preservação da memória, sugerindo uma aura neutra e apolítica, é preciso atentar ao potencial desses espaços como arena, como espaço de conflito, como campo de tradição e contradição (CHAGAS, 1999, p. 19).
Na contemporaneidade, como bem apontou Igor Simões em sua apresentação, é reconhecida a possibilidade de mobilidade do passado e das formas de narrá-lo, as sofisticadas estratégias de poder associadas à visibilidade de algumas narrações em detrimento de outras e a atual disputa entre essas narrativas. O pesquisador apontou a função da educação no ambiente museal, no sentido de provocar pensamentos e gerar desconfianças, trazendo o público como agente no estabelecimento de relações entre obras. Essa articulação entre educação e curadoria como possibilidade para a pluralidade das narrativas foi um ponto em comum nesse pensamento coletivo elaborado a partir dos encontros.
Lamentando não poder aprofundar mais na relevância que cada palavra, cada expressão, cada imagem que cada um dos pesquisadores participantes trouxeram para esse encontro, que certamente continua reverberando em cada um dos estudantes presentes, finalizo com o entendimento de que esse encontro trouxe um princípio ético-relacional que parte de África. Este, que nos aponta possibilidades de seguirmos vivendo com todas as nossas potencialidades na diáspora. “Ubuntu é a essência do ser humano. Ele fala de como a minha humanidade é alcançada e associada a vocês de modo indissolúvel.” (TUTU, 2012, p. 42). Grata às organizadoras e a todos os participantes por me fazerem entender que, em um espaço acadêmico, posso “ser o que sou pelo que nós somos” e que “existo, porque pertenço”.
Referências:
CHAGAS, Mário de Souza. Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica de Mário de Andrade. In: Cadernos de Sociomuseologia, v. 13 n. 13, 1999.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar,2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
TUTU, Desmond. Deus não é cristão e outras provocações. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012.