MENU
MAC USP
PROCESSOS
CURATORIAIS
Curadoria Crítica e
Estudos Decoloniais
em Artes Visuais
DIÁSPORAS
AFRICANAS
NAS AMÉRICAS
MAC USP /
GETTY FOUNDATION –
CONNECTING ART
HISTORIES PROGRAM

Relatos de estudantes

Contra a crononormatividade da história da arte brancocêntrica

Uma abordagem decolonial da história da arte evidencia os processos construtivos do cânone desta disciplina, assim como sua contribuição para o estabelecimento de centros e periferias – hegemonias e subalternidades – culturais e geopolíticas, em consonância com dinâmicas coloniais e neocoloniais. Essa abordagem é perpassada por questões de gênero e raça, em um esforço para desestabilizar ou interromper práticas epistemológicas, culturais, sociais e políticas enviesadas e discriminatórias. Nas apresentações e debates do webinário de pesquisa Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas, viu-se o emprego de metodologias que visavam à desconstrução de convenções e vieses antiquados sobre os quais se construiu o campo da história da arte – eurocêntrico em sua concepção original, sendo recentrado nos Estados Unidos da metade do século XX em diante – e a articulação de novas possibilidades historiográficas e curatoriais que levem em consideração as condições específicas para a prática artística na América (entenda-se, continente americano) e no Brasil. O procedimento biográfico foi frequentemente empregado, nas apresentações, para resgatar narrativas negligenciadas pela linha do tempo da história da arte mainstream. Foram expostos modos alternativos de se considerarem o tempo e a história, partindo de cosmovisões de raízes indígenas e africanas, como praticadas por artistas modernos e contemporâneos, com foco, em particular, no conceito de afrofuturismo.

Tanto a biografia quanto uma percepção eurocêntrica do tempo e da história estão no cerne da disciplina da história da arte. Elizabeth Freeman, em Time Binds: Queer Temporalities, Queer Histories, formula o conceito de “crononormatividade,” isto é, “o uso de tempo para organizar corpos humanos individuais para o máximo da produtividade”. A autora afirma que o tempo é manipulado, “[convertendo-se] regimes historicamente específicos de poder assimétrico em tempos e rotinas corporais aparentemente comuns” para construir e legitimar determinados corpos, comunidades, vidas e narrativas históricas. A crononormatividade é identificada por Freeman em diversas instâncias coerentes entre si: a retemporização do corpo resultante da transição do trabalho agrícola para o trabalho assalariado; a linha do tempo patrocinada pelo estado, que é determinada por marcos como nascimento, casamento, aquisição de propriedade e morte; a capacidade de uma pessoa de narrar sua vida em uma estrutura novelística, definida por Freeman como “centrada em eventos, orientada para um objetivo, intencional e culminando em epifanias ou grandes transformações”; e a definição das atividades e sentimentos cultivados no espaço doméstico como atemporais e primordiais em oposição aos ritmos cruéis do trabalho industrializado, criando dois fusos horários e apagando o trabalho doméstico das mulheres. As culturas, histórias e vidas impactadas por tais procedimentos cronobiopolíticos são “variada e simultaneamente negras, femininas e queer”.

Em oposição à crononormatividade, Freeman propõe uma “erotohistoriografia”: uma política de prazeres imprevisíveis e profundamente corporais que se opõem à lógica do desenvolvimento”. O estado e o mercado coloniais implementam mecanismos temporais de grande escala para conter as populações, além da contenção espacial exemplificada pelas fronteiras e pela divisão entre espaços públicos e privados. Por meio de tais mecanismos, práticas culturais, eventos históricos e vidas podem prosperar ou são interrompidos à força. Uma dessas instâncias é a marcha acelerada da “modernidade” ocidental, que suplanta a “pré-modernidade.” Freeman introduz uma intervenção temporal representativa do estado colonial: a imposição do calendário para contrariar “os ritmos indígenas do sagrado e profano, representando esses ritmos como atrasados e supersticiosos”. A erotohistoriografia, portanto, resiste às linhas do tempo oficiais persistentes em estados-nação pós-imperiais, incorporando noções pós-coloniais de heterogeneidade temporal e centrando o deleite corporal como conducente ao pensamento histórico. Várias apresentações desse webinário utilizaram-se de mecanismos narrativos não lineares, expuseram como artistas questionaram o tempo colonial eurocêntrico ou alicerçaram seus argumentos em uma historiografia corpórea, como na erotohistoriografia de Freeman.

Thomas Cummins, professor de arte pré-colombiana e colonial no Museu Dumbarton Oaks e na Universidade de Harvard, iniciou as apresentações do webinário com uma fala sobre o conceito de “hispanidad”, por meio da obra Retrato de Dom Francisco de Arobe e seus filhos Pedro e Domingo (1599), de Andrés Sánchez Galque, a exposição Buen Gobierno (2021), da artista peruana Sandra Gamarra, e o volume El primer nueva crónica y Buen Gobierno (1615), do autor indígena peruano Felipe Guamán Poma de Ayala. Cummins traçou uma narrativa transtemporal, considerando o violento processo da colonização espanhola, a construção de uma identidade espanhola durante a ditadura de Francisco Franco e os ecos dessa identidade de cunho fascista, que se manifestam atualmente na Espanha e além, sob os auspícios do conceito de “hispanidad”, para ressaltar os supostos benefícios do processo civilizatório em vez da brutalidade dos métodos empregados na invasão de territórios.

Renata Felinto, artista visual e professora de Teoria da Arte na Universidade Regional do Cariri, iniciando o segundo dia de apresentações, propôs uma reflexão sobre as potencialidades de uma “micro-história”, com o foco retornado ao indivíduo. As narrativas traçadas por ela focaram-se em três artistas mulheres e negras ativas a partir dos anos 1950 e 1960: Ana das Carrancas, Madalena dos Santos Reinbolt e Raquel Trindade. O título de sua apresentação, As artes visuais como lugar íntimo da edificação de sonhos e destruição de pesadelos, reflete a trajetória dessas mulheres, que, em intenso diálogo com práticas culturais e artísticas cotidianas e a partir de comunidades diaspóricas, construíram obras que aliaram as ações de ser, viver e saber. Sem educação artística formal, elas interagiram com cânones artísticos que Felinto descreve como afroirmanados, demandando que seu trabalho seja observado por meio de critérios que escapam à historiografia brancocêntrica da arte.

Kleber Antonio de Oliveira Amancio, professor da Universidade do Recôncavo Baiano, similarmente a Felinto, aponta o viés branco da história da arte por meio do termo “arte branco-brasileira,” um contraponto válido à expressão “arte afro-brasileira.” Se Cummins tratou do conceito de “hispanidad” e suas raízes coloniais e fascistas em sua apresentação, Amancio comenta sobre como o conceito de “brasilidade” serviu para a construção de histórias que suprimiram e desumanizaram artistas negros. A obra A Negra (1923), de Tarsila do Amaral – uma pintura retratando uma figura anônima, que pode ser interpretada como um tipo racial, aprisionada e sem ação, a modelo sendo possivelmente uma mulher escravizada pela família de Tarsila –, é o ponto de partida para uma investigação sobre o retrato de pessoas e culturas não brancas na arte brasileira do início à metade do século XX. O Lavrador de Café (1934), de Cândido Portinari, a figura do mestiço e sua enxada posicionado entre passado e futuro. Samba (1925), de Emiliano Di Cavalcanti, que reitera o corpo da mulher negra como disponível para o homem branco. Amancio deriva, destes e outros exemplos, que o corpo negro aparece na arte branco-brasileira como: (a) um tipo; (b) um corpo que trabalha; e (c) como parte da paisagem, mas nunca como indivíduo. Exceções a essas categorias podem ser observadas na obra de José Correia de Lima, Lucílio de Albuquerque, Armando Viana e Antonio Ferrigno. Heitor dos Prazeres e Arthus Timotheo da Costa são artistas negros que propuseram rumos diferentes para a representação negra na arte brasileira. Amancio concluiu sua apresentação com uma provocação para que provincializemos a Europa e a arte eurocentrada, reforçando que não basta que pessoas negras estejam representadas, é preciso que sejam compreendidas como humanas. Na discussão em grupo, Amancio apontou que a definição do que é a arte negra no Brasil está intimamente conectada à crítica da arte no país, que é produzida majoritariamente por pessoas brancas. Artistas negros que não se adequaram a esse entendimento foram silenciados ou negligenciados.

O historiador da arte, pesquisador e curador Igor Simões interrompe a crononormatividade em sua curadoria do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo com o objetivo de oferecer protagonismo aos artistas negros da coleção. Seu método constelar implica um embaralhamento de cronologias e linguagens artísticas e é baseado na noção de montagem fílmica. A obra Assentamento (2012-2013), de Rosana Paulino, serve, para Simões, como representação visual de uma história da arte que problematiza a si mesma. As obras selecionadas do acervo são transtemporais, anacrônicas entre si, criando diálogos inesperados, reverberações conceituais e visuais, ocupando a parede, o espaço do espectador e o exterior da galeria. Simões delineia um novo repertório da arte brasileira construído por negros e negras em diálogo tanto com o cânone que centra a Europa e os Estados Unidos, ou a arte branca no país, como outros cânones possíveis – o da arte popular ou o da afroirmanidade, conforme coloca Felinto. Como Amancio, ele privilegia uma definição da arte negra brasileira a partir da obra de artistas e pensadores negros. Simões é um defensor ferrenho da educação como alicerce da missão do museu no Brasil, assim como de uma formulação da história da arte acessível, podendo ser discutida por muitos.

No dia que concluiu o webinário, fomos divididos em diversos grupos para conversarmos. Em meu grupo, mediado por Ana Magalhães, professora da Universidade de São Paulo e diretora do Museu de Arte Contemporânea da mesma instituição, discutimos sobre o anacronismo e o deslocamento como estratégias produtivas para a curadoria e a historiografia da arte contemporânea, interrompendo narrativas hegemônicas que coerem com a produção de conhecimento colonial e neocolonial. A erotohistoriografia de Freeman – anticolonial, focada no indivíduo e seus ritmos corporais, escapando das linhas do tempo teleológicas de processos históricos globais e da crononormatividade – pode ser uma metodologia adequada para tanto.

  • 1Freeman, Elizabeth. Time Binds: Queer Temporalities, Queer Histories. Durham: Duke University Press, 2010, 3.
  • 2Ibid.
  • 3Freeman, Time Binds, 5.
  • 4Freeman, “Time Binds, or, Erotohistoriography,” 59.
  • 5Ibid., 57-58.
  • 6O curador Claudinei Roberto da Silva apresenta uma exceção a essa postulação em sua fala nesse webinário: o “moderno não modernista” Manoel Raimundo Querino (1851-1923), artista e intelectual negro que escreveu as obras Artistas Baianos (1909), As Artes na Bahia (1913) e O Colono Preto como Fator na Civilização Brasileira (1918) no início do século XX.