Por isso decidimos não morrer jamais
como também não morreram aquelas outras
que aqui estiveram antes de nós
-Roberta Tavares
Este texto é um relato incompleto, uma crônica fragmentada na melhor das hipóteses. Escrevo sabendo bem que só posso dar uma visão parcial do webinário de pesquisa organizado pelo MAC USP que ocorreu na semana de 4 a 8 de outubro de 2021. Intitulado Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Artes Visuais – Diásporas Africanas nas Américas, o evento reuniu quarenta pesquisadores e curadores comprometidos em pensar além das lacunas e dos apagamentos nos arquivos para focar na arte afrodescendente nas diásporas em todo o continente americano. Cada palestra apresentada no webinário mereceria um ensaio próprio, mas este pequeno texto irá ampliar determinados aspectos de algumas apresentações que me impressionaram e que já estão influenciando minha pesquisa e escrita.
Eu escolhi me incluir neste relato, narrando-o em primeira pessoa, não por falta de rigor ou familiaridade com as expectativas acadêmicas, mas justamente porque quero incomodar esses padrões para perguntar quem eles beneficiam, e a quem eles servem? Quem eles ajudam a silenciar? Ao fazê-lo, busco ecoar o que uma de nossas colegas, Carolina Gracindo, expressou no final do terceiro dia do webinário, quando compartilhou o quanto se sentiu emocionada e impactada pelas palestras dadas por Renata Felinto, Thiago de Paula Souza e Luzia Gomes. Ela transmitiu sua admiração de forma animada e cheia de lágrimas, ao que Felinto imediatamente respondeu. Com o cuidado de reconhecer a resposta emotiva de Gracindo, Felinto apontou que sua intervenção constituía um ato decolonial em si mesmo, uma contra-resposta a ambientes acadêmicos que proíbem tais manifestações humanizadas de afeto. Essa troca nos serviu como um lembrete, um farol para procurar uma forma de história da arte e crítica de arte que genuinamente nos anima, que emociona. Uma forma de curar a academia talvez seja garantir que haja espaço suficiente para dúvidas, para histórias paralelas e histórias alternativas, nascidas de diferentes expressões e formas de conhecimento que podem incluir emoções em primeira pessoa.
Essa consideração começa fora do tempo linear, com uma citação que eu encontrei alguns dias após o encerramento do webinário, mas que, em retrospecto, poderia muito bem ter sido parte da introdução do evento. “A teoria não é intrinsicamente curativa, libertadora e revolucionária. Só cumpre essa função quando lhe pedimos que o faça e dirigimos nossa teorização para esse fim”, escreveu bell hooks em seu livro Teaching to Transgress. hooks foi referenciada ao longo da semana, citada por outros, e eu me apeguei ao efeito que suas palavras tiveram em nossas discussões. Para mim, o que se destacou em todas as palestras de nossos palestrantes convidados foi a urgência pulsante com que eles discutiam seus temas variados, a forma como eles, seguindo hooks, pediam às suas investigações que participassem desse processo de cura, de libertação revolucionária. Desde olhar atentamente para a pintura de 1923 A negra, de Tarsila do Amaral, até reconsiderar o trabalho de Rubem Valentim como uma forma de afro-futurismo, todas as palestras apresentadas durante o webinário levaram a sério a tarefa de usar a teoria para promover uma abordagem decolonial da história da arte. Seja Diane Lima fazendo uma análise crítica da documentação fotográfica de trabalhadores negros limpando as galerias na primeira Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, ou Thomas Cummins expondo a recusa da Espanha em questionar a narrativa dominante de hispanidad, os palestrantes fizeram questão de estabelecer e evidenciar as implicações políticas de suas pesquisas.
Mônica Cardim falou sobre a possibilidade de encontrar uma cura decolonial nos retratos transatlânticos de indivíduos negros que o fotógrafo Alberto Henschel tirou no Brasil e levou consigo para a Europa. Ao olhar para esses retratos do século XIX como uma expressão da diáspora africana, Cardim refletiu sobre as lacunas nos arquivos, particularmente as lacunas em torno da vida das mulheres negras. Ela trouxe à sua análise a discussão sobre colonialidade pelo sociólogo peruano Anibal Quijano, que descreveu a colonialidade do poder como aquela que se estendia para controlar as formas de existir no mundo, tentando silenciar qualquer forma de conhecimento que não se alinhasse a um eurocêntrico. Este ponto repercutiu com a fala de Angélica María Sánchez, que nos lembrou de ter cuidado com o impulso da ciência de categorizar e medir tudo, organizando a história natural e hierarquizando formas de conhecimento em um processo que estabeleceu colonizadores brancos e colonos como superiores a todos os outros.
O que particularmente me impressionou na fala de Cardim foi como ela evidenciou o efeito duradouro dessas lacunas nos arquivos históricos, dessas omissões no passado. O que acontece com a construção da identidade de um indivíduo que não se vê refletido na história? O que se desloca quando ela pergunta: “E onde estou?” Quais são os efeitos duradouros de ter tão poucas imagens que registram a vida dos negros no Brasil durante o século XIX, e do fato de que a maioria das fotografias que sobrevivem são emolduradas dentro de uma construção do outro, imposta pela antropologia e pelo eurocentrismo, dificultando a possibilidade de nos envolvermos mais profundamente com os indivíduos retratados? A apresentação de Cardim foi tanto uma pergunta quanto uma resposta. Ela realizou sua cura descolonial ao ajudar a escrever uma contra-narrativa a esses vazios no arquivo. Ao olhar para o passado em busca de respostas, ela contribui para a formação de outros tipos de histórias tão necessárias de como será o futuro do povo afro-brasileiro. Não há dúvida de que mais trabalho precisa ser feito sobre este assunto e que as perdas no arquivo podem nunca ser reparadas, mas o que Cardim compartilhou conosco foi sua maneira de tentar suturar essa ferida no passado e, ao fazê-lo, encontrar alguma forma de reparação.
Renata Felinto apresentou o trabalho de artistas negras e afrodescendentes que desenvolveram suas técnicas principalmente fora dos circuitos de arte tradicionais. Ela chamou a atenção para os trabalhos de Ana das Carrancas e Madalena dos Santos Reinbolt. Tomando-os como exemplos, ela nos encorajou a fundamentar nossa pesquisa em questões muito concretas relacionadas ao contexto no qual e a partir do qual um artista está trabalhando. Por exemplo, onde os artistas estão produzindo suas peças, geograficamente, e onde nasceram e foram criados? Ela ressaltou a importância de entender o cotidiano deles em termos de tarefas, mas também em relação a seus materiais e linguagens visuais. No entanto, Felinto também nos alertou, “a experiência da cor não é uniforme, não é monolítica” e não deve ser escrita sobre como tal. Essas considerações são essenciais ao pesquisar sobre um artista mas tornam-se especialmente relevantes ao escrever sobre sujeitos minoritários, argumentou Felinto.
Essas reflexões evidenciam que a história da arte e a academia estão repletas de problemas sustentados por valores e expectativas coloniais que tornam certas pessoas e seus trabalhos quase invisíveis. Para se opor a esses silêncios, Felinto nos pediu para vasculhar os arquivos em busca de pistas, de sedimentos com os quais imaginar as histórias daqueles que foram abandonados. Confrontar os espaços de exclusão e privilégio seria encontrar uma maneira de contrabalançar narrativas hegemônicas com releituras radicais e empoderadoras da história. Senti-me profundamente comovida com a fala de Felinto, mas também incomodada, com perguntas e dúvidas. Como podemos estudar esses processos sem contribuir para sua captura, fetichização ou tokenização como histórias de exceção que obscurecem o atual racismo estrutural?
De Thiago de Paula Souza, carrego sua breve discussão sobre o Repertório N. 2 de Davi Pontes e Wallace Ferreira, apresentado no Frestas – Trienal de Artes, e a ideia de que o temporário, o provisório, pode ser em si um caminho para encontrar uma maneira de continuar. Em sua repetição quase hipnótica de passos, Pontes e Ferreira performam uma coreografia de autodefesa, cujo objetivo é abrir espaço para que outros processos surjam. Seus corpos nus se divertem com toda sua corpulência enquanto mantêm o direito à opacidade. Seguindo o filósofo martinicano Édouard Glissant, essa opacidade está na base das relações éticas e estratégias de defesa que os artistas buscam implantar, trazendo a possibilidade de existir com diferença, insistindo na ilegibilidade e não na transparência obrigatória.
Agradeço a Luzia Gomes pelas recomendações de leitura: três fragmentos curtos de obras de Jeferson Tenório, Edimilson de Almeida Pereira e Miriam Alves e um poema de Roberta Tavares, que cito no início deste ensaio. Aspectos do “Poema para não morrer” apareceram em muitas das palestras e perguntas que surgiram ao longo do webinário: uma insistência na vida, no poder do amor como um ato decolonial radical, na recusa de ser apagado ou categorizado, medido e catalogado.
Porque vida e amor tudo eles
querem apartar de nós e sabemos
bem: estarmos vivas e insistir no amor
é contrariar as estatísticas em que eles
querem nos jogar
Igor Simões propôs conceber exposições como lugares de aprendizado, como espaços onde fragmentos podem ser combinados de diferentes formas. Ao pensar no momento da exibição como a abertura de um espaço de diálogo e crítica, as obras também se tornam mediadoras para se entenderem em relação, em combinação. Nesse sentido, as exposições podem ser vistas como ferramentas para perguntar o que significa estar no Brasil ou ser brasileiro. Além disso, ao questionar o que continua fora de vista, escondido no depósito dos museus ou simplesmente fora de suas coleções, Simões pede que consideremos: quais interpretações alternativas ou concepções da ideia de “Brasil” surgiriam se as narrativas de artistas afro-brasileiros e indígenas estivessem envolvidas nessa releitura? Esta pergunta implicava outras questões em minha mente, tais como: Estamos repensando e refletindo sobre como funcionam as instituições culturais? E como o museu decreta ou recusa as lógicas de opressão, violência e desapropriação?
Ao desenvolver seu argumento, foi importante que Simões reconcentrasse a dúvida como a principal fonte de material para discussões e programação pública e focasse na incerteza como base para considerar as obras expostas. Sua concepção do espaço do museu se assemelhava mais à concepção de um laboratório, onde não se deve confiar cegamente no que é exibido nas paredes brancas. A suspeita e o pensamento crítico vieram à tona em sua concepção do museu, exigindo uma redistribuição urgente das exposições e o cultivo de outras formas de ver por meio de propostas e projetos educacionais. Ao longo de sua apresentação, ele ressaltou a necessidade de ir além daqueles imaginários limitantes que pré-estabelecem como pode ser o trabalho criado por artistas afro-brasileiros. A resposta para esse problema é reconhecer que não há uma resposta, nenhuma narrativa única que possa destruir e reconstruir a arte afro-brasileira, mas sim uma pluralidade de histórias que compõem essa mesma categoria.
Concluo este relatório com uma citação da acadêmica feminista negra Saidiya Hartman, cuja influência atravessou muitas das palestras ao longo da semana. Ela escreve: “a necessidade de tentar representar o que não podemos, em vez de conduzir ao pessimismo ou desespero, deve ser acolhida como a impossibilidade que condiciona nosso conhecimento do passado e anima nosso desejo por um futuro liberto”. É nesse mesmo espírito que termino esse pequeno ensaio, abraçando a esperança trazida após conhecer outros pesquisadores e refletindo sobre o conhecimento que foi compartilhado ao longo da semana do webinário.